sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Povos indígenas em luta

7 DE FEVEREIRO
DIA NACIONAL DA LUTA DOS POVOS INDÍGENAS
Instituído pela Lei n° 11.696 de 12 de Junho de 2008 - no Governo Lula

Vozes do Rio Negro: Do Noroeste da Amazônia tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Venezuela para o mundo sobre a luta dos povos indígenas no Brasil




Todos contra PEC 215, já Brasil!!!

Verás que um filho teu não foge à luta (Hino Nacional Brasileiro)

Estamos juntos em uma data, 7/02/2014, seguindo o calendário oficial da República Federativa do Brasil e conseqüentemente sua noção de tempo que nos fora imposta. Tal noção nós já dominamos e incorporamos ao nosso jeito, sem desrespeito à norma. Inclusive travamos momentos de diálogos, negociações e acordos com instâncias reconhecidas na nossa democracia. Hoje seria um dia de comemoração de acordo com o diário Oficial. No entanto, vemos mais um dia se passar, afinal já são quase 190.000 mil dias desde 1500, sem com que o ataque aos povos indígenas cesse.
Nem todos os brasileiros sabem o que aconteceu e o que está acontecendo com os povos indígenas de direito originário no Brasil do passado, no Brasil de hoje e de futuro. Eis aqui vamos contar para você entender a questão.

No passado fomos 5 a 6 milhões de pessoas, mais de 1.000 línguas e etnias diferentes. Para onde foram estes milhões de pessoas? Saíram para invadir outras terras em outros países? Os que chegaram aqui há bem pouco, já alcançam mais de 190 milhões de pessoas em apenas 5 séculos. E em apenas 5 séculos os povos nativos que aqui habitavam este lugar há milênios, foram reduzidos a menos da metade de um milhão. E as sua terras foram tomadas por completo através de um certo Estado Nacional inventado para dominar povos nativos na face da terra pelos poderoso-invasores. Ai de quem inventou isto na face da terra, por que através dele mataram muita gente, e um certo Deus está cobrando deles explicação sobre isso . E eles mesmos diziam que matar pessoas, seres humanos, era pecado, daí certo que hoje devem estar comemorando resultado de suas ações nas profundezas do inverno criado por eles para eles mesmos que é a pior condenação criada pelo criador para desobedientes.

Quase 2000 anos depois de Cristo, portanto depois de dois milênios, os povos indígenas garantiram seus direitos dentro do Estado Nacional Brasileiro; que em menos de 20 anos depois de 1988, os ruralistas, antigos latifundiários, hoje diretamente através do Estado Nacional Brasileiro no Congresso Nacional se valem para tentar rasgar os princípios da Constituição Brasileira através de emendas constitucionais com argumentos discriminatórios para vergonha nacional de forma cruel; nada estranho porque estão apenas seguindo conselhos de seus pais, avôs, da sua linhagem, de seus costumes que está há cada ano mais perto de acabar com o mundo suas ações resultaram no que é a mudança climática que não terá pena de ninguém, por mais que os ricos tentam construir suas moradas em outros planetas; mas a idade chegará neles e não sabem que não escaparão da morte que os levará ao encontro de seus ancestrais lá no inferno.

É o máximo que desejamos de felicidade para os ruralistas e a outros seus apoiadores e seguidores porque não temos força suficiente para fazer esta terra ter mais longevidade, para que as futuras gerações no planeta-terra pudessem usufruir tempos e mais tempos como viviam nossos antepassados há milênios atrás. Parece que sobre tudo, o que está acontecendo com os povos indígenas no Brasil de hoje tem aval da sociedade Brasileira ou do mundo como todo? Será finalmente o nosso fim tanto desejado pelos inimigos dos povos indígenas no Brasil? Mas não será isso o fim do próprio Brasil que anseia tanto a riqueza, o crescimento, o poder de consumo em uma ansiedade que não deixa as pessoas dormir direito todos os dias preocupados para não serem roubadas as suas riquezas? Será que não sabem que estão perdendo todos os dias as suas riquezas de tranqüilidade de serem apenas humanos e cuidarem da terra de fato? E que sua missão é de cuidá-la e não destruí-la? De manejá-la e não desmatá-la? De enriquecê-la e não empobrecê-la?

A história desta terra Brasil não condiz com princípios humanos para com os povos indígenas. Os povos indígenas não têm propriedade e título de terras. As Terras Indígenas são terras da União, são patrimônios da União dentro de política de ordenamento territorial. Ao contrário dos nossos antigos inimigos “latifundiários” hoje com a nova cara, cara refeita certamente com cirurgias plásticas que os maquiaram de “Ruralistas” que possuem 60% de Terras do Brasil como propriedade e parece que querem ter o Brasil inteiro como sua propriedade. Isso não é contra princípio de um Estado Nacional? Foi para isso que conseguiram chegar ao Congresso Nacional? Para mudar todos os direitos das minorias deste país e depois entre si distribuir mais Terras somente em nome de riqueza que destrói a própria terra no mundo?

Serão estas pessoas humanas, restos dos restos humanos no sentido de que são descendentes dos que vieram como bandidos para esta terra que estão destruindo todos os dias e de todas as formas? Será que não se preocupam com sua futura geração? Será que seus filhos não param para pensar e ver o que seus pais estão fazendo é uma crueldade contra seres humanos? Será que não carregam mais cruz no seu peito para lembrar que não são imortais?

Lembramos que 12% das Terras Indígenas são Terras da União, são Terras-patrimônios da União. E que isso é muito pouco que se conquistou depois de muita luta, muitas mortes de vida, depois de tantas perdas de terras originarias e que deve ter rigorosa proteção; que a União tem o dever de se fazer respeitar. Isto se este país ainda for democrático e de direito. Será?
Lembramos também que os 60% de Terras como propriedade e títulos que os Ruralistas têm das Terras Brasileiras, já significa uma ameaça a sociedade Brasileira. É uma ameaça interna que o Brasil não enxerga ou que se faz de cego por causa de interesses particulares que acabam desviando funções pública, governamentais e da coletividade. Uma grande maioria ainda nesta terra não tem espaço para construir uma pequena casa para descansar sua cabeça depois de longas datas de luta no dia-a-dia do trabalho.

Os chamados ruralistas, antigos latifundiários hoje não passam de uma “peste” que além de estarem em campos, destruindo a floresta, a terra, os rios, lagos, nascentes, estão nos partidos, também nos governos, no congresso, no judiciário, compram direitos, destroem direitos, atacam sem pena aos direitos especiais e das minorias da sociedade Brasileira. E o Governo Federal parece concordar com todo. Ainda existirá Justiça no Brasil dos latifundiários, ou melhor, dos “Ruralistas” para toda sociedade Brasileira?

Os povos indígenas são acusados falsamente década a década de internacionalizar a Amazônia, mas na verdade são Ruralistas que internacionalizam os direitos de alimentação, porque eles não alimentam a população brasileira, eles alimentam outros países com exportação e mais exportação, não se sabe ainda porque não se exportaram que seria melhor para o Brasil; são eles quem tornam as terras brasileiras em particulares. Quando conseguirem transformar tudo em seu benefício, ai o Brasil não será mais um país democrático e de direito.

Os povos indígenas já sofreram bastante, muito e muito, perderam muitas outras etnias na luta pela vida, já perdemos toda nossa terra, e pouco que reconquistamos dentro da própria Constituição, querem retomar o que só temos para nosso usufruto exclusivo, sendo ela mesma no Estado Nacional Brasileiro. Já tiraram de nós todas nossas terras, e já nos causaram desmatamento de nossas florestas, e desmatamento cultural, destruição da natureza, o que mais? E ainda querem mais e mais? Por isso o Brasil não pode aceitar quaisquer medidas legislativas e administrativas que afete negativamente os nossos direitos. Todos contra PEC 215, já Brasil!!!

Queremos nós representantes dos Povos Indígenas do Rio Negro reafirmar nosso compromisso e dever de manter aceso e permanente a luta e que não vai parar; que a luta pela vida continua pelos povos indígenas; que a luta para longevidade da terra continua para todos os filhos da terra, inclusive para os filhos dos nossos inimigos que querem acabar com nossos direitos que restou. Pois ainda mantemos vivo nosso ser de humanidade, nossa herança mais importante deixada pelos nossos ancestrais para com a vida na terra.

VIVA O DIA NACIONAL DA LUTA DOS POVOS INDÍGENAS!!!

Todos contra PEC 215, já Brasil!!!
São Gabriel da Cachoeira, 07 de Fevereiro de 2014.

Assina os povos indígenas do Rio Negro
Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kotiria (Wanana ou Uanano), Kubeo, Letuana, Makuna, Miriti-tapuya, Pira-tapuya, Pisa-mira, Siriano, Taiwano (Eduria), Tanimuka, Tatuyo, Tukano, Tuyuka, Yuriti; Baniwa, Baré, Kuripako, Tariana, Werekena; Daw, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Nukak, Kakwa; Yan

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sábado, 1 de fevereiro de 2014

A vitória de Snowden e o fracasso de Obama

Ex-agente que denunciou NSA indicado para Nobel da Paz. Em Washington, presidente debate-se para preservar espionagem e salvar aparências

Por Cauê Seignemartin Ameni, em Outras Palavras


Ilustração de Jason Stou

Aos poucos, vão surgindo as evidências de que a história trabalha mais a favor do ex-agente Edward Snowden, do que do presidente americano Barack Obama. Na quarta-feira (29/01), o ex-agente que revelou a maior plataforma de vigilância da história, foi indicado para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz. Oscar Wilde, escritor inglês do século XIX, sintetizou uma vez a importância histórica de fatos como este: “a desobediência é, aos olhos de qualquer estudioso da História, a virtude original do homem. É através da desobediência que se faz o progresso, através da desobediência e da rebelião”.

No outro lado da corda, Obama admitiu pela primeira vez em público (17/01) a necessidade de mudanças no trabalho da Agência de Segurança Nacional americana (NSA). Depois de sete meses de revelações cada vez mais desconfortáveis e crescente clamor público, ponderou: “nossa liberdade não pode depender das boas intenções de quem está no poder, e sim da lei que restringe esse poder”. Num longo discurso, apoiou alguns pontos do grupo de especialistas criado pela Casa Branca para reformular o sistema de vigilância do governo. Mas ignorou as sugestões mais importantes, mantendo-se em apenas dois pontos superficiais: 1) restringir progressivamente o programa de armazenamento maciço de dados telefônicos nos EUA, tal como existe hoje e; 2) limitar a espionagem sobre líderes aliados – inimigos continuam sendo alvo – , que provocou uma tempestade diplomática com países amigos.

Para os vastos setores da opinião pública que pedem o fim da perseguição a Snowden, o governo americano passou longe do esperado. Em seu editorial, o próprio New York Times classificou o discurso de Obama como “eloquente sobre a necessidade de equilibrar a segurança da nação com privacidade pessoal e liberdades civis”, mas “frustrante em detalhas e vago na implementação”. O jornalista Lorenzo Franceschi-Bicchierai, especialista nos assuntos sobre ciber-política na revista digital Mashable Nova York, listou algumas mudanças importantes que foram completamente ignoradas.

1. Todos os outros programas de coleta em massa de dados continuam

Obama apoia a proposta do grupo de especialistas que criou, para retirar da NSA o banco de dados sobre as chamadas telefônicas. No entanto, o governo não pronunciou uma palavra sobre como restringirá a coleta em massa de metadados da Internet. “Esse tipo de programa pode ser utilizado para obter mais informações sobre nossas vidas privadas e abre as portas a outros programas mais intrusivos”, diz o NYT.

2. O Defensor Público, no Tribunal FISA

O grupo interno recomendou a criação de um “Advogado Defensor do Interesse Público”, para lutar pela privacidade e liberdades civis perante os juízes do “Tribunal FISA” – que podem impedir a coleta de dados privados sobre cidadãos… Advogados e juristas apoiaram a ideia, uma vez o “Tribunal FISA” não respeita direitos civis básicos. Apenas os defensores do governo podem prestar depoimento; as sessões e os vereditos são secretos. Obama porém não confirmou a aceitação da proposta. Apenas disse, vagamente, que um grupo de especialistas participará das sessões secretas do tribunal. E que serão ouvidos só em “casos significativos…”

3. Revisão Judicial das Cartas da Segurança Nacional

O FBI vem usando as chamadas Cartas de Segurança Nacional há anos, para exigir que bancos, empresas de internet e de telefonia entreguem dados de seus clientes e usuários. Funcionam como uma espécie de “salvo-conduto” administrativo, liberando o FBI para requerer dados dos usuários diretamente às empresas, sem necessidade de pedir uma autorização judicial. O grupo interno de Obama sugeriu que mudasse esse procedimento, reformando a lei, para tornar indispensável a aprovação de um juiz em todos os casos. Porém, a Casa Branca apoiou apenas mais “transparência” e não disse uma palavra sobre a necessidade de supervisão judicial.

4. Espionagem nas bases de dados de empresas comerciais norte-americanas em todo o mundo

Documentos vazados em outubro por Snowden, revelaram que a NSA recolhia vasta quantidade de dados de usuários na internet, sem que as empresas como Google e Yahoo soubessem. A agência obteve acesso aos servidores onde os dados eram armazenados. Obama não disse nada a respeito e o porta-voz da Casa Branca, contatado pelo site Mashable, não quis comentar o assunto.

5. O trabalho da NSA para derrubar os padrões de segurança e encriptação

Em setembro, o New York Times revelou o enorme esforço da NSA para derrubar os padrões de segurança e encriptação, de modo que os agentes tivessem acesso à comunicação que usuários acreditavam estar protegidas.

A NSA e até o FBI foram acusados de invadir sistemas criptografados, depois de terem solicitado que empresas de software incluíssem “portas dos fundos” nos programas vendidos a consumidores, uma espécie de entradas secretas, por meio das quais espionavam os usuários da nova versão do Windows, por exemplo.

O grupo para reformular a NSA apoiou a criação de tecnologia mais forte de encriptação, argumentando que o governo não pode “de modo algum subverter, minar, enfraquecer ou trabalhar para tornar vulneráveis softwares oferecidos à venda a consumidores, como se fossem seguros.” Obama nada disse sobre o caso.

Graves denúncias, nenhuma resposta

Obama também calou-se em relação às denuncias feitas ao longo dos últimos meses por grandes publicações internacionais, que se assustaram com a capacidade cada vez mais invasora da NSA. Numa das mais recentes, o New York Times revelou, em janeiro de 2014, o programa de implantação de vírus em cerca de 100.000 computadores mundo afora, para devassar dados e lançar ataques até mesmo a computadores sem acesso a internet.

Usada desde 2008 para invadir computadores, a tecnologia via rádio permite contornar uma das principais dificuldades enfrentada pela agências durante anos: penetrar em máquinas cujos adversários tornaram impermeáveis à espionagem ou ao ciberataque. O dispositivo é inserido fisicamente pelo fabricante do equipamento ou por um espião, transmitindo dados do computador visado através de radiofrequência.

O principal programa que usa este método radical de espionagem tem codinome Quantum. E entre seus alvos estão o exército chinês, o sistema militar russo, a rede utilizada pelos cartéis mexicanos, instituições comerciais dentro da União Europeia e terroristas inimigos da Arábia Saudita, Índia e Paquistão.

Ao expor tudo isso, Snowden girou a roda da história. E revelou, lembra o New York Times, a ignorância e falta de controle do presidente americano, que não tinha conhecimento das operações obscuras perpetradas pela agência de segurança de seu próprio governo. Infelizmente, ao invés de parabenizá-lo, Obama preferiu desaprovar seus métodos. “A defesa da nossa nação”, disse, “depende em parte da fidelidade daqueles a quem os segredos são confiados”. A diferença é que, ao contrário do presidente, o ex-agente é mais fiel aos cidadãos do que às agências militares.

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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Escritor é um cidadão comum

Na nossa sociedade do espetáculo, o escritor não tem mais a aura que o distinguia no passado, porque, entre outras razões, não está mais cercado por populações de analfabetos nem é o melhor produto para mercantilização. As grandes mídias, com o advento de novas tecnologias como a fotografia, o rádio, o cinema e a televisão, preferem mercadorias mais flexíveis e palatáveis ao gosto de públicos massificados. O lado bom desse processo foi situar o escritor na planície comum da humanidade, onde aliás sempre esteve e onde o êxito depende da elevada taxa de suor necessária para as grandes obras: muito trabalho. Essa mudança de percepção da atividade do artista, do escritor em particular, é o tema do artigo abaixo (MD).

Por Suzana Montoro, publicado originalmente no site Capitu.   




      Livros sobre escritores sempre estiveram na moda. Paralelo às biografias, editoras têm investido na publicação e reedição de volumes que tratam da correspondência entre autores, sejam eles amigos, sejam apenas conhecidos ou tenham estabelecido entre si um relacionamento epistolar de mestre e discípulo. Este gênero de literatura, digamos assim, é de grande valia para os estudos literários e levam a um entendimento mais aprofundado da obra já que elucidam o momento histórico e cultural do escritor, bem como os aspectos relacionados a circunstâncias de vida pessoal. São livros que situam o autor e sua obra. Mas além dos estudiosos, estes livros agradam também a uma outra parcela de leitores, os curiosos que, estimulados pela mídia, deliciam-se com a vida pessoal do escritor e suas idiossincrasias.
       O escritor é uma pessoa como outra qualquer e o livro, o fruto de seu trabalho. Simples assim. E deveria bastar. No entanto, não é o que ocorre. Quando aparece, passa a ser cultuado como avis rara. Nas entrevistas da imprensa existe a preocupação em buscar fatos prodigiosos ou passagens desconcertantes de sua biografia, numa tentativa de torná-lo atraente aos olhos do grande público ou de diferenciá-lo a qualquer custo. E quanto mais extravagante, melhor.
      Não há entrevista sem a indefectível questão: por que você escreve? Nunca se pergunta a um engenheiro por que ele constrói pontes, a uma nadadora por que ela nada ou a um médico por que opera. Porque gosta deveria ser a resposta primeira. Ou porque é o que sabe fazer, porque a vida lhe deu essa oportunidade, porque o pai ou a mãe tinham a mesma
ocupação, enfim, as respostas são diversas e a maioria delas, óbvias. Mas o escritor, no mais das vezes, procura por uma resposta original e de alguma maneira reveladora. Poucos respondem simplesmente que escrevem porque gostam (e gosto não se discute). E ainda por cima, quando podem, condenam a profissão como se fosse um desígnio divino do qual não conseguem escapar e que lhe traz noites insones, dias de aflição, perseguição de personagens e loucuras afins. Queixam-se e dizem-se inevitavelmente atados a esse destino nefasto, por assim dizer.
      Claro que há escritores e escritores. Falo de maneira generalizada e até mesmo padronizada. Não são todos os que se entregam aos mandos e desmandos da mídia. Há também aqueles que se esquivam o quanto podem. Será esta uma forma de fugir desse estereótipo ou, paradoxalmente, de cultuá-lo? Já que também estes recebem a instigante pecha de esquisitos. Pois parece haver uma crença difundida e generalizada de que escritores são esquisitos (até mesmo Chico Buarque teria afirmado isto!). Por que? Por que ele inventa histórias e faz parecer que são verdadeiras? Por que cria solitário um mundo paralelo que seus leitores irão habitar?

      Escrever é profissão, é ganha-pão (pelo menos, deveria ser). Nem mais nobre nem mais reles do que qualquer outra. Talvez mais divertida, isso sim. E certamente mais solitária que a maioria. Mas um ofício como outro qualquer. Com seus ossos e deleites. Seu glamour e seus entraves. Embora a mídia insista em fazer do escritor um personagem atraente e de alguma maneira alheio à uniformidade e ao fastio. Será este apenas um recurso mercadológico? O fato é que o escritor passa a ser, em alguns casos, mais importante do que seus textos. Não que ele não seja. É claro que é, afinal, é o pai da criança. Mas o que ele vende é o texto, não a sua imagem. O objeto de consumo é o livro e não o escritor. Livros falam por si. Ou, pelo menos, deveriam.
      Ainda que vaidoso, já que gosta de mostrar o que escreve (e quando não mostra, também o é por vaidade) e de certa forma insano, já que pretende viver de literatura num país de tão poucos leitores, o escritor é um cidadão comum. O que há de pujante em sua vida está nos livros que escreve. Caso contrário, tampouco os escreveria.



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sábado, 18 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - II

Nesta segunda parte do artigo, irrompe o personagem como potência máxima do estilo, mas este ainda responde às condições propiciadoras do determinismo e da liberdade. A dialética de sua dinâmica afinal se resolve por escolhas ditadas pela ética e pelo talento do autor, selando assim o grau de compromisso assumido por este diante do mundo. A reconfiguração do material selecionado será a sua resposta.

Por Marcelo Degrazia


O narrador é o ente libertador do escritor, o carcerário que abre a porta da prisão para sua saída à rua. Não estamos mais sob o comando de um império absolutista, mas os poderes do narrador são, em último caso, outorgados pela instância superior que dirige o espetáculo. Mas ambos deverão se movimentar pelas limitações determinadas por uma lei maior, a lei da rua.

Na busca do Santo Graal, eles, autor e narrador, queiram ou não, seguirão os comandos por vias de mão dupla, vias com sentido único e/ou becos sem saída, um cipoal de vias tão enredadas que poderíamos chamar de sintaxe da urbanidade. (Não pergunte o que é isso, apenas sinta uma cidade – a sua cidade preferida – caminhando dentro de você). 

Nesse caminho eles enfrentarão toda sorte de obstáculos, como lombadas, pardais eletrônicos, buracos no asfalto, desníveis, motoristas embriagados, a criança que se desprendeu da mão do pai, tachões, falta de placas de sinalização, semáforos enguiçados, trânsito parado, pistas bloqueadas por acidentes, paralelepípedos soltos, ruas sem pavimentação, passagens de nível, queda de barreira, carros estacionados em mão dupla, enfim toda sorte de oposições e dificuldades para a fluidez do trânsito na caótica urbanidade de nossas ruas (E tudo isso acontecendo dentro de você).

Poderíamos chamar esse trânsito caótico de vocabulário selvagem.

É na confluência desses dois eixos de linguagem – as vias fixas e seus acidentes – que o autor e sua entidade representativa, o narrador, deverão organizar o material 
previamente selecionado pelas instâncias superiores do autor. Chamamos isso de inconsciente e de razão, e incluímos também a pele, os membros, os sistemas e órgãos – e sobretudo as vísceras. A tarefa é pesada, por isso sempre se recomenda o número maior possível de gerentes-narradores e de vozes-escravas auxiliares (os personagens). Até porque, se o pai de todos (Homero) se utilizou de vários agentes de muitas gerações, porque o nosso escritor contemporâneo, com o tempo disponível de apenas uma vida sem certezas, prescindiria de auxílio tão valioso?

Embora no controle da situação, até onde é possível numa atividade em que o inconsciente dá as cartas e joga de mão, o autor delega parte de seu poder ao seu representante. Este, o narrador no uso da liberdade concedida, vai fiando a trama do bordado. Quanto maior a confiança e o entrosamento entre ambos, maior a desenvoltura e a liberdade do representante do autor na obra. Assim como este, o narrador também tem suas manias e particularidades, e ao abordar o material que lhe foi confiado, vai, a exemplo de um rapsodo homérico, imprimindo nele a sua marca.

Com a orientação do seu criador e o auxílio das vozes dos personagens, o narrador brinca de Deus. Inclusive quando
parece renunciar a todo poder, como é o caso do narrador de Samuel Beckett. Até alcançar a ordem consciente e, sobretudo, inconscientemente buscada pelo autor. O tipo de narrador, sua posição em relação aos materiais da história, sua constituição ôntica, sua origem social e sua formação política (ainda quando tudo isso não esteja claro na cabeça do escritor - pior pra ele!) produzirão de todo esse material um certo foco regulado pelo autor, e tão nítido e transparente quanto mais clareza o escritor tiver do seu processo de criação. 

Então, como estamos no âmbito de uma liberdade concedida, o estilo imprimido pelo narrador, com seus vocábulos selvagens, sua sintaxe urbanizada e suas inflexões de voz, constitui-se de um composto de materiais e modos transferidos a ele diretamente do espólio do autor, para formar isso que poderíamos então chamar de estilo outorgado, ou concedido, afinal o controle do jogo está sempre nos dedos da instância superior, sem a qual o cosmos literário não se realiza em todo seu complexo.

Mas, se bem lembramos, novos figurantes subiram ao tablado e ameaçam roubar toda a atenção do espetáculo: os personagens.

Ah, os personagens! Serão eles, então, os donos do estilo?

Nesses círculos infernais, descida que nem mesmo a Dante estava permitida, o amálgama furioso encontra o seu fundo, o seu reflexo, o seu espelho na mais aguda perspectiva. É aí que a luz emitida pelo autor e filtrada pela entidade do narrador, reunida novamente por uma espécie de prisma invertido na alma da personagem, afinal explodirá. Mas, para que o milagre se realize em toda sua potência, embora de papel, o personagem deverá ter peso, ainda que todo o seu peso de carne e ossos somados seja convertido na luz do personagem aparentemente sem história nem circunstância, tal qual, mais uma vez, o personagem becketiano. Pois será esse seu peso que deverá realizar a outra face do milagre, a de se constituir num ímã poderoso o suficiente para atrair e galvanizar, em torno de sua alma-armadura, os pulsares de luz emitido sobretudo do inconsciente do escritor.

Se o narrador é o filho do autor, os personagens são seus netos, a quem a deseducação, dentro dos limites da rua – ou da literatura – é permitida e até mesmo estimulada. Porque as leis que orientam e controlam os dois primeiros, estão todas suspensas no caso do personagem, ao menos num primeiro momento. E isso para que o escritor, consciente ou inconscientemente, faça sua escolha dentre as leis que melhor representem seu juízo, seus sentimentos, seus órgãos, suas vísceras. No caso dessas últimas em especial, cria suas próprias leis pancianas e quixotescas, para formar o cosmos de sua escatologia.

E aí, meus amigos, o personagem é todo estilo! São as pulsões mais fortes e puras traduzidas na linguagem, as revelações individuais dessas novas entidades da obra que tomam conta do tablado e, dentro dos
limites estabelecidos
pelos dois primeiros, erguem a história diante dos olhos do leitor. É impossível, no ponto em que chegamos, não fazer a relação metafórica dos conceitos da psicanálise com essas categorias narrativas, em que o escritor corresponderia ao ego, o narrador ao superego e o personagem ao id selvagem de todo esse amálgama. Pelas características deste último, não é de se estranhar que o personagem, ao expandir aqueles limites, inova.

Na constituição final do estilo, as marcas mais fortes (considerando que todas afinal partem do escritor) são gravadas pelo personagem, com mais ou menos determinismo... É aqui onde repousa e onde se resolverá a questão da liberdade. Nesse percurso da luz, conforme o núcleo emitente de seu facho, poderíamos classificar os escritores em lógicos, sentimentais, orgânicos e viscerais, conforme a intensidade maior de seu brilho, já que todos eles recebem e transmitem seus estímulos de todos os núcleos de sua pessoa. Mas colocar as coisas nesses termos, embora facilite do ponto de vista da análise, daria chance a um método cujo resultado prático seria uma visão engessadora do processo.

Penso que a melhor resposta para o estudo do estilo da obra, levando em conta todos os procedimentos do autor e as categorias aqui pinceladas, seria dada pela ótica da liberdade. Talvez essa poderosa e cegante lente, à luz da própria obra, poderia nos fornecer alguns resultados esclarecedores sobre o processo de criação. E de saída, a intuição nos diz que, na direção entre o juízo e as vísceras, o sentido corre mais fortemente do primeiro ao último.
Ou 
seja, quanto mais baixo e internalizado o facho de luz, mais fortes e ricas serão as cores de sua liberdade. Ou de outro modo: a liberdade, no gesto de projetar a luz através da linguagem, ganha mais força e velocidade quanto mais se aproxima das vísceras, do inferno, do âmago. O que nos leva a desconfiar que, embora se apresente mais lúcida na razão do sujeito da obra, a origem e toda sua força libertadora está nas infravias do indivíduo, ou naquilo que chamamos de amálgama furioso, o seu núcleo mais candente e poderoso. Mais um passo e libertamos a besta! Mas se ela irrompe em seu estado bruto, adeus obra, não sobra pedra sobre pedra, até porque o autor, nesse estado de paixão, não sentiria necessidade alguma dela.

Mas, como vimos anteriormente, o escritor, se não se precaveu com um plano de voo antes de iniciar a viagem, ainda assim, ao se utilizar da sintaxe urbana ara ordenar o fluxo selvagem das palavras, ainda assim é ele, por mais desmandos que promova o personagem, ainda assim é ele quem está no comando do processo. É verdade também que poderemos medir o seu grau de liberdade quanto mais perto ou longe ele esteja dos extremos. Isso é verificável por sua formalização dada ao material. Se mais perto da razão ou do juízo, mais controlado e educado sairá seu facho, mais redonda a frase, e, contrário senso, quanto mais perto das vísceras, maior será a força de sua liberdade, mais pontiaguda a frase, e, por consequência, mais frouxa a formalização do material. Os sentimentais e os orgânicos ficam no meio do caminho. Por isso mesmo, os escritores que mais mobilizam o leitor são justamente aqueles que emitem seus pulsares, se não de dentro, ao menos o mais próximo desse amálgama furioso. Ou, como diria James Joyce, e Clarice Lispector aproveitaria para o título-emblema de sua obra: perto do coração selvagem.

Isso nada tem a ver com juízo estético – afinal cada obra traz sua própria poética –, e sim com a liberdade que cada escritor concede a si mesmo na
escolhe e visão do material. Essa própria visão já é um selo qualificador
de liberdade, pois gradua a posição do autor diante das possibilidades de momento e orienta o tanto de liberdade permitida ao seu narrador. Até o limite de entregar as migalhas aos personagens, no caso de não permitir que estes assumam o controle do jogo, ainda que temporariamente, como por exemplo num fluxo de consciência. Talvez até por medo da liberdade, por tudo que implica a sondagem do desconhecido, ou por temor de perder o plano da obra rio abaixo.

Pois aqui entra, no fim das contas, o dado crucial para a formação do estilo da obra. No centro o temperamento, no entorno a formação, as referências, o xadrez de estrelas e suas correspondências nas galáxias de palavras, tudo enfeixando a sensibilidade, a inteligência, o talento. Isso tudo formará o homem que formará o estilo. E esse estilo, de certa forma, na forma da obra, expressará a visão do autor, ou o ponto de vista da obra a respeito de todo seu material abordado. Ajudaria bastante se pudéssemos acessar, inclusive, os artigos recusados nesse processo de juntar a matéria no quadrante da futura obra. Pois assim qualificaríamos melhor a liberdade e a orientação do escritor no tratamento do seu tema.

Em princípio, no sentido sartriano, todos partimos da mesma cota de liberdade, se aceitarmos a consciência como entidade totalmente aberta ao mundo, antes de aderir à matéria. A consciência, em seu fluxo permanente e vazio de sentido, só obtém sua existência objetiva quando adere à matéria do mundo. Mas já não somos mais consciências puras e a matéria do mundo que interessa ao escritor, em especial o ficcionista, é a matéria que já foi tocada pela mão humana. Ou seja, antes do encontro, o escritor já possui sentido, assim como a matéria de sua eleição. 

Por que ele se orientou para determinados artigos do mundo ao invés de outros? Aí começamos a adentrar no determinismo de origem, o que vem da experiência
acumulada, processo do escritor que em nada, do ponto de vista fenomenal, difere dos demais seres humanos, a não ser que sua especialidade já o adestrou a olhar a matéria do mundo de uma certa maneira até aqui, mas nada garantindo que não possa olhar amanhã de maneira diferente para os mesmos artigos. Estes, por sua vez, também guardam, de maneira explícita ou cifrada, a forma resultante das forças históricas, políticas e sociais que os determinaram até aqui, nada impedindo que o escritor, ou outro sujeito em seu lugar, amanhã lhe dê outro sentido.

Nesse encontro do sujeito com o seu objeto, quanto há de determinismo e liberdade?

Nosso assunto já começa a partir das escolhas feitas pelo escritor. É aí que sua liberdade ganha sentido. Pois com mais ou menos determinismo, com mais ou menos liberdade – a psicologia atua sobretudo em função do passado do escritor. Mais ou menos consciente, mais ou menos inconsciente, ele fará a escolha, e essa escolha trará a tônica de um estilo. A marca da liberdade, por onde podemos inferir o grau dela em suas escolhas, é o que ao fim nos dirá o quanto o escritor usou de liberdade em seus movimentos na realização da obra. 

Sem dúvida, a liberdade da escolha estará condicionada pelas limitações do material, pela experiência, pela posição social do escritor, por sua infância, etc., e disso dependerá o maior ou menor grau de determinismo e autonomia, não há como fugir. A liberdade, enquanto faculdade da consciência, em tese, é absoluta no seu estado de potência. Mas, enquanto força que se projeta em direção à escolha para se realizar, jamais será plena, ainda que a experiência materializada, enquanto fruição da própria escolha, nos ofereça a estupefaciente sensação de totalidade. Ainda assim será parcial e limitada pelo enquadramento anterior à experiência literária dado pelo escritor. E embora condenado à liberdade, como diria Sartre, não há garantia alguma de que fará a escolha mais acertada. Até porque, escolha certa para quem? E sob que ângulo de visão?

Antes de escolher o projeto a que se lançar, ele, de acordo mais uma vez com o filósofo francês, experimentará a angústia. Para além dos determinismos, o dele e o do material, o escritor estará diante das
questões: que mundo tenho diante de mim? como posso me posicionar diante dele? E mais: como devo me utilizar dele? Aí entramos no tema da ética, a base de toda liberdade refletida em si, no outro e no mundo. Portanto, ao escolher seu material, ao determinar seu ponto de vista, ao ordenar seu narrador e chicotear suas personagens com a sintaxe mais ou menos urbana e a palavra mais ou menos selvagem, ele estará escolhendo um mundo dentro de um mundo de possibilidades, criando um cosmos, ordenando a vida, ao menos os termos do código com o qual escolheu dialogar com a realidade à sua volta.

Se é um labirinto sem saída ou se é o convés de um iate para ondas aprazíveis, e tudo o mais que possa haver entre esses dois caminhos, só a experiência estética do estilo orientada pelo talento no uso de certa liberdade ética dirá. O leitor então saberá afinal com quem está falando, que gato ou lebre, que cordeiro ou lobo estarão tentando lhe vender por baixo da pele. Nessa experiência pode ser que o escritor, ao escapar do determinismo para mergulhar nas ondas turbulentas da liberdade, conforme o seu grau de determinismo, pode ser que esse salto angustiante seja vivenciado por alguns como liberdade demais, o tipo de condenação que provoca a angústia e logo uma possível paralisia. Para estes, então, será sempre preferível uma liberdade operativa, pragmática, e tanto melhor se ela for o fruto de uma constituição ética e livremente pactuada – até onde se é possível se ser livre na fatura e observação das leis.

Aplique-se isso à questão da (auto)biografia e se terá, por outro ângulo (mais fechado e profundo) uma ideia da enorme complexidade do problema.


Para não tirar nem dar toda a razão a Buffon, poderíamos, para retocar a sua máxima, chamar a colaboração de Ortega y Gasset e concluir: o estilo é o homem e a sua circunstância, aí incluídos o presente e o passado do escritor e do mundo, o material e sua angustiante abordagem agenciada pelo narrador e suas personagens, e aquelas duas condições propiciadoras expostas ali atrás (determinismo e liberdade), enformadas pela ética e pelo talento individual nos processos das escolhas.

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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - I

Ao ler um texto literário nos perguntamos de quem é o seu estilo. Do autor? Do narrador? Da personagem? Quem imprime as marcas do estilo na literatura, quem afinal é o dono da voz? O artigo a seguir, dividido em duas partes, é um exercício de especulação em torno dessas questões. A conclusão, a ser postada em breve, apresenta o estilo como uma espécie de certidão de compromisso do escritor diante do mundo.

por Marcelo Degrazia



Corpo de Heitor carregado de volta para Troia, cena da Ilíada,
obra fundadora da literatura ocidental

É possível um autor manter, ao menos por um par de livros, o mesmo estilo?

A pergunta já traz em si um grave problema de concepção, pois hoje em dia, ao menos para os leitores mais exigentes, o autor até pode ter o seu estilo. No caso de uma biografia talvez não haja dúvida, o leitor espera que o estilo da obra apresente uma tal formalização, que podemos atribuir com segurança tratar-se do estilo do autor. Se a obra vem toda ela vazada num mesmo padrão, sua força de convencimento será sem dúvida maior. Pode até não ser o nosso entendimento da verdade o que ali vai anotado, mas sairemos dela aptos a repetir o velho bordão italiano: si non è vero, è ben trovato.

No jogo biográfico, portanto, o estilo joga um papel importante ao sinalizar para o leitor a veracidade do relato, ao menos como pensado pelo autor. Um estilo peculiar passará facilmente a impressão de que estamos diante da voz verdadeira deste, embora num segundo momento possamos até duvidar do que ele afirma. Em todo caso, nos sentimos diante do autor, a prova é o estilo, independente do quanto ele tenha aberto o coração e a mente. Se mentiu ou distorceu os fato de modo consciente para evitar prejuízo à sua imagem, o fez na própria voz, situação ainda mais grave no caso da autobiografia.

A contraprova, seguindo a lógica inversa do exposto acima, é quando o escritor apresenta ao longo dos episódios biográficos, se não mudanças bruscas de estilo, ao menos solavancos e travadas súbitas, hiatos, superficialidade e ligeireza indevida, sintaxe confusa, amplificação de situações e temas sem justificativa, excesso de detalhes, etc.

Se bem caracterizadas as fraturas no estilo, o leitor se vê autorizado a pôr em dúvida o relato e a conjecturar sobre os possíveis motivos desses tropeços, com mais razão ainda se dispuser de fontes divergentes. Aqui é bastante presumível que a psicologia do autor deve ter um papel importante, com o propósito de tornar nebuloso ou até mesmo de esconder o rabo do bicho engolido.

Ainda que o autor negue de modo consciente, ou até por isso mesmo, nessa sua estratégia de despiste apontarão ao menos o focinho e as orelhas do escondido, pois o conflito entre o dever ou a necessidade de contar e o interesse ou o benefício em encobrir acaba se configurando na linguagem com aquelas características.

Se o autor, ao contrário, oculta de maneira deliberada o tema no mínimo perturbador, quando não francamente contrário aos seus interesses, tal estratégia se manifestará em geral numa linguagem superficial, rala de argumentos e num tom muitas vezes pueril. Essas inconsistências de estilo, típicas no encobrimento – o emaranhado ou o superficialismo da linguagem –, também se manifestam em outras áreas do conhecimento, sobretudo quando o autor não domina o mínimo necessário de seu assunto para aprofundar o estudo. No discurso psicanalítico, imaginamos, o disfarce encobridor acionado pelo paciente deve atingir um alto grau de desvio.

Isso sem considerar a biografia de encomenda, situação em que o autor muitas vezes assume papel de cúmplice na execução dos crimes contra a linguagem e a consciência do leitor. A contratação de um especialista na arte de escrever – o ghost writer – dificulta bastante a investigação das pistas. Num contexto mais amplo, ainda teríamos de considerar a influência do mercado nos casos de encomendas claramente orientadas por interesses comerciais.




Mas e na literatura ficcional, como fica essa questão?

A princípio e em princípio, o leitor, quando ataca um livro de ficção, está interessado na história e na maneira como ela vai sendo narrada, só num segundo plano (geralmente o plano ocupado em primeiro lugar pelos críticos) talvez busque chegar ao dono da voz. Mas seu caminho será árduo, e, conforme a sofisticação do relato, poderá ficar perdido já no início da caminhada, pois o leitor não especializado, assim como familiares e amigos do criminoso, em geral comete o erro básico de todo aprendiz de detetive em literatura: confundir a voz do narrador com a do autor.

Afinal quem é o dono do estilo: o autor do livro? o narrador da história? ou o personagem que a vive?

Lá em antigamente, quando se sabia que a Ilíada e a Odisseia não eram obras de um mesmo autor, mas o resultado de séculos de narrativas orais recolhidas e formalizadas, não se cogitaria a questão do estilo do autor frente a um material tão rico e vívido. E talvez aceitassem de muito bom grado - caso discutissem a questão - a liberdade de Homero, se foi ele de fato o compilador e artífice das aparas e encaixes, para imprimir traços pessoais na organização do material. Afinal, seria um custo bem razoável a ser pago pela maravilha de desfrutarem de toda aquela tradição reunida em livros. O pagamento justo pelo esforço do poeta seria a fama, valor bastante inferior ao prazer proporcionado pela leitura dos episódios encadeados com arte. 

Talvez da incompreensão desse fato fundador da literatura ocidental tenha resultado o equívoco de se buscar coerência estilística na obra dos autores posteriores, cuja formulação lapidar coube ao conde de Buffon no século XVIII: o estilo é o homem.

Sem dúvida, obras monumentais como as de Virgílio, Dante, Cervantes e Shakespeare colaboraram e muito para essa ilusão do francês e de seus adeptos. Mas se o critério de Buffon recebesse aplicação rigorosa, teríamos de escolher, entre dois caminhos, um deles: não é mais o mesmo, o homem que percorreu de cabo a rabo a obra, ou esta, 
por inépcia de seu criador, apresenta falhas e desníveis em seu estilo.

Assim é porque as obras, ao longo de sua fatura, são tão desiguais quanto aquelas obras fundadoras atribuídas a Homero. É impossível ler Eneida sem ficar com o travo na língua de que estamos diante de um pasticho literário das epopeias gregas, em que pese o talento extraordinário de seu autor. Hoje, numa cultura pós-pós-moderna, isso já não tem grande importância, uma vez que não se condenam recursos como o pasticho, a referência e a alusão. Ao contrário, são até valorizadas, pelo conceito da intertextualidade, as obras que nascem da costela de outra, como é o caso da origem de Enéas. 

Ilustração de Gustave Doré
para Divina Comédia
Para muitos, sentimos uma queda de tensão na passagem do primeiro para o segundo volume da Divina Comédia, talvez porque os assuntos infernais da vida humana nos atraiam mais do que a beatice do mundo cristão, em que pagãos como Virgílio não têm acesso. O poeta, ao bloquear a passagem do seu mestre ao paraíso, além de passar de maneira estratégica à segunda etapa de seu método, bloqueia junto uma série de assuntos e formas de tratamento própria daquele mundo pagão. 

A mesma queda ocorre na segunda parte do Quixote, embora o maravilhamento que experimentamos com o lance metaficcional do autor - ao entregar ao seu anti-herói cavalheiresco o primeiro volume com as histórias vividas pelo próprio protagonista - seja um dos pontos altos da obra. 

Já o Bardo Imortal, além de ter sido um voraz pilhador de obra alheia, também apresentou um variado cardápio de pratos, cujos sabores não despertam na língua o mesmo prazer, seja de uma peça para outra, seja dentro da mesma peça.

Poderíamos enfileirar exemplos sem fim, como o caso de obras gigantescas também no tamanho, como é o caso de Proust, quando o empuxo narrativo ao final de Em Busca do Tempo Perdido já não é mais o mesmo dos primeiros volumes. Tudo para provar o que já está sugerido na própria frase de Buffon: o ser humano muda ao longo da vida, logo... o estilo é o homem que muda... 

Não vem ao caso esmiuçar as razões das mudanças, como o longo tempo na fatura de certas obras, e até mesmo a mudança de concepções literárias do autor, basta verificar a ocorrência, em especial nas obras mais longas, ou em obras diferentes do mesmo autor realizadas em diferentes épocas.

Buffon, talvez por estar empenhado demais com as espécies botânicas para enfeitar o jardim do rei, talvez por esse seu olhar científico sobre as espécies zoológicas e botânicas, não
Buffon: "O estilo é o próprio homem"
percebeu que, além dos animais descenderem de outros animais, antecipando os estudos de Darwin e Lamarck (pesquisadores científicos que ajudariam mais tarde a acelerar a percepção das mutações das espécies...), não percebeu que a mudança dos homens, que já se acelerava no seu tempo industrioso, acabaria provocando também a mudança do conceito de obra. Que deixou de designar, em especial com o Modernismo, apenas o conjunto de peças de um mesmo autor ao longo de uma vida (implícita aí a noção de unidade existencial, filosófica e de estilo), mas passou a designar também e sobretudo a peça individual. 

Obra autônoma e auto-referente foram conceitos surgidos para embasar o enfoque isolado da obra, em certa medida desligado do ambiente e do tempo passado (tradição), numa espécie de poética autotélica impulsionada pelo Formalismo Russo. E aí, com mais clareza, ocorre o desligamento crescente da noção fixa de estilo, como explicação da obra em seu conjunto a partir do autor, da época ou da escola, para render os seus melhores frutos quando aplicada individualmente a cada obra, ou a cada peça da obra, esta agora guardando da antiga noção apenas a ideia de conjunto de peças de um mesmo autor.

Quem é agora o dono do estilo?

Vamos recuar à origem ocidental do problema: a epopeia homérica. O estilo do poeta, a contribuição pessoal, única e subjetivamente intransferível (abstraindo o fato de que mesmo as escolhas de um Homero também obedeciam à certa tradição no trato da matéria poética) na composição final das obras, embora imprimisse um cunho individual a elas, não subtraía os estilos individuais dos aedos antepassados que haviam criado e desenvolvido os cantos ao longo das gerações. 


Imaginemos que isso fosse um dado ao alcance de sua pequena e seleta plateia de leitores. As alterações no estilo, as mudanças de tom, as interpolações como o canto sete da Ilíada - com a enfadonha lista das famílias nobres que
Aquiles cura Pátroclo
participavam da guerra pelo lado grego, seriam perfeitamente aceitáveis e reconhecíveis para esse público instruído. Os estudos filológicos e a estilística estão aí para sustentar o argumento de que tais obras são na realidade uma mescla de diferentes estilos. Portanto, ainda que limada aqui e ali para o encaixe, de acordo com a noção poética construída por um indivíduo (Homero) dentro da história de seu tempo, ainda assim elas por certo conservam traços de estilo de seus colaboradores ancestrais, mesmo que hoje nos fosse impossível deslindá-los completamente.

Diferentes autores, diferentes narradores, diferentes personagens... diferentes estilos. A tal ponto que não resistimos: é então possível afirmar que a primeira obra recolhida em livro (Ilíada) de que se tem notícia no Ocidente, de acordo com o conceito que temos atualmente de livro, autoria e estilo, foi criada por diferentes vozes, bem como hoje esperamos de um autor contemporâneo. Com a diferença de que agora temos um nome apropriado para designar esse aspecto da composição, nome de um conceito para celebrar a diversidade de origem, a multiplicidade de vozes, a interação de sujeitos, o nivelamento dos discursos numa mesma ou em diferentes claves hierárquicas, ou seja: a polifonia. A obra fundadora da literatura ocidental, portanto, tem em sua origem diferentes registros de timbres.

Naturalmente, fica por discutir o aspecto ideológico (a visão de mundo) implícito no nivelamento do material aplicado por interesses estratégicos, narrativos e estilísticos do autor (Homero). A orientação unívoca dessa voz dominante (agora a principal) resultou sem dúvida no rebaixamento das demais; no extremo, até quase o seu apagamento. O termo “polifonia” parece impróprio aqui, se aplicado em seu rigor máximo, pois em princípio o que o verniz poético do autor realiza é justamente a obtenção de um ponto de vista unificador de todo o material compilado, seguindo as pegadas de certa tradição ao agrado das elites de seu tempo. 

No entanto, o rebaixamento das distintas vozes e a eliminação de matérias divergentes, hipótese bastante plausível na passagem da oralidade para o registro escrito, não eliminam os elementos originais ainda presentes na obra. Ao contrário, num primeiro momento os desfiguram, para num segundo momento reconfigurarem-nos. De qualquer forma, o material genético aportado pelas vozes originais continua presente depois da operação poética realizada pelo autor. Além dos aspectos anotados acima, referentes a certas quebras e desnivelamento das partes, estudos minuciosos nos registros mais antigos das obras (até onde permitem as pesquisas atuais nos campos da linguística, da filologia, da estilística, da poética, da etnologia, da história, etc.), já comprovaram a presença de outras vozes em sua composição.

Apesar de tudo, é possível afirmar com segurança que as primeiras obras literárias de que se tem notícia no Ocidente, embora demorássemos mais de dois mil anos até que Baktin apresentasse a palavra juntamente com a formulação do seu conceito a partir da obra de Dostoiévski, e apesar do verniz homogeneizador de um Homero, apesar disso tudo é possível afirmar que essas primeiras obras da literatura ocidental, sob a ótica de sua constituição, em certa medida já nasciam polifônicas.

E agora, de quem é o estilo?

Voltando ao parágrafo anterior: o coro de vozes na antiguidade, sobretudo pela compilação e organização do
Representação idealizada de Homero
poeta que pode acidentalmente ter recebido o nome de Homero, não tinha a função de democratizar a abordagem de seus assuntos, como ocorre atualmente na literatura ocidental, por exemplo, em especial a partir do escritor russo, só para ficarmos no modelo desenvolvido por Baktin. Podemos até mesmo conjecturar que nesse tipo de arranjo poético, pela própria posição social e política ocupada pelo poeta em seu meio, é bem provável que muito material contemporâneo ao que entrou no cânone deve ter ficado à margem nesse processo. 

Então, assim como certas sutras jamais integrariam o Corão, e os livros chamados apócrifos jamais serão recepcionados no corpus do Antigo nem do Novo Testamento, assim também a visão de uma sociedade grega, em torno dos séculos oito e sete antes de Cristo, jamais admitiria em seu corpo os cantos estranhos ou divergentes à constituição de seu organismo, afinal o estilo é o homem, e a sua saúde é também e sobretudo uma razão de Estado.

E o que hoje de manhã tem a ver com tudo isso?

A dedução lógica disso tudo pode ser expressa numa nova pergunta: não podemos afirmar, para atenuar a culpa de Homero e suas vítimas ou possíveis comparsas, se queremos defender a liberdade subjetiva do indivíduo e do autor contemporâneo, que embora na literatura atual haja polifonia de vozes, os cantos desses coros recebem sua modulação de uma voz superior, e que em última análise a clave interpretativa originária - o princípio ordenador do material - é o diapasão ortolinguístico o tempo todo na ponta dos dedos do escritor? 

Para abusar mais um pouco da paciência do leitor, podemos dizer que o autor contemporâneo, ao colocar em marcha os conceitos e princípios informadores de sua futura obra, em certo nível, seguindo sempre as instruções e o ritmo de seu inconsciente, está, com a ajuda de todo o arsenal operativo da razão (por que afinal alguma força estetizante tem que pôr em ordem as rebeldias do inferno), está se colocando na posição original do pai fundador da literatura ocidental, só para ficarmos em nosso hemisfério.

Portanto, o autor, ao praticar a sua regência sinfônica das múltiplas vozes, está pondo em operação todo um complexo de notas e vibrações internas nascidas do amálgama furioso da alma, para constituir uma resposta (ou visão de mundo) que será entregue feito uma partitura para o novo regente: o leitor. Este deverá realizar o seu trabalho de decifração dentro dessa bela e libertadora camisa-de-força que é o cosmos do autor, o fruto desse complexo em ação que, se não ofender os criadores em seu panteão, bem poderíamos chamar de complexo de Homero. Cada um, segundo as notas biográficas pessoais, realizando uma versão própria (ou edição, que no nosso caso aqui seria o mais apropriado), imprime no material a sua própria marca.

E então, já dá para saber quem é o dono do estilo?

(em breve, a segunda parte do artigo)

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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

E se o Grande Irmão controlar a internet?



Estados e empresas já testam sistemas que permitem ocultar ou eliminar, maciçamente, conteúdos digitais. Para evitar futuro orwelliano, é preciso agir agora.

Por Peter Van Buren | Tradução Cauê Seignemartin Ameni 

Fonte: Outras Palavras

 
Após alimentar sonhos de uma comunicação radicalmente livre, a internet poderia converter-se no exato oposto? A digitalização, que hoje acelera a circulação de informações em todos os formatos e linguagens, não facilitaria, também, a eliminação de informações e opiniões que já não têm existência material — porque foram reduzidas a impulsos eletrônicos? Nos últimos dias, fatos novos reforçaram a urgência de considerar estas ameaças com seriedade e de encontrar meios para afastá-las.

Nos Estados Unidos, depois de analisar a fundo o sistema de coleta maciça de informações sobre as chamadas telefônicas dos cidadãos, mantido pela Agência Nacional de Segurança (NSA) um juiz considerou-o, em 14 de dezembro, “quase orwelliano”. Três dias depois, um grupo de consultores formado pelo presidente Barack Obama para analisar este mesmo mecanismo recomendou uma série de mudanças. Propôs, em especial, retirar os poderes que pequenos grupos de assessores militares têm hoje para ordenar a vigilância direta sobre o conteúdo das comunicações mantidas por certas pessoas, a partir da identificação de seus interlocutores frequentes. Não há, no entanto, qualquer garantia de que as recomendações sejam adotadas.

Ao contrário: analistas de assuntos de segurança, ouvidos pelo “New York Times”, disseram “duvidar” que Obama tenha “coragem” para enfrentar a vasta rede de agências de espionagem formada após 11 de setembro de 2001 e a assinatura da “Lei Patriótica“. Um assessor da Casa Branca afirmou que o presidente analisará as propostas em suas férias de fim de ano no Havaí, mas que já descarta uma delas: precisamente a que desmantelaria certas articulações entre tais agências, para limitar seu poder.

Até onde pode ir este controle sobre a comunicação? No texto a seguir, Peter Van Buren, um diplomata norte-americano ainda na ativa, chama atenção para um de seus aspectos mais aterrorizantes. Num mundo em que as informações estão sendo digitalizadas em enorme velocidade e em que os suportes físicos estão desaparecendo, pode tornar-se fácil demais “apagar” informação incômoda. Não se trata apenas de hipótese. Van Buren, que escreve em publicações como The Nation, Huffington Poste Mother Jones, apresenta os sistemas que já são utilizados (embora em pequena escala), por governos e empresas para restringir o acesso dos cidadãos a certos conteúdos. No momento, prossegue ele, isso é feito com pretextos consensuais: por exemplo, restringir o acesso a sites que estimulam a pedofilia e o abuso de crianças. Mas, em novos cenários políticos, as mesmas técnicas de invisibilização não poderiam ser utilizadas contra ideias dissidentes? Não estamos arriscados a materializar o “buraco de memória” previsto por George Orwell em “1984″?

O alerta de Van Buren não precisa ser tomado como uma sentença. Assumir a ameaça como algo inevitável seria, aliás, um convite ao conformismo. Mas na agenda de temas sobre os quais é preciso agir para construir um planeta habitável no futuro, parece cada vez mais necessário destacar a disputa pela liberdade na internet. Talvez o que esteja em jogo, nesta batalha, seja a própria possibilidade de democracia e liberdade de expressão. (Antônio Martins)


Leia a matéria:

E se fizessem Edward Snowden desaparecer? Não, não estou sugerindo alguma iniciativa “inovadora” da CIA, ou uma teoria conspiratória ao estilo de “quem matou Snowden?”, mas algo ainda mais tenebroso.

E se simplesmente fosse possível fazer desaparecer tudo o que alguém denunciou? E pudessem ser eliminados, em tempo real, todos os documento da Agência de Segurança Nacional (NSA) revelados pelo ex-agente Snowden — cada entrevista que ele concedeu, cada indício documentado sobre um Estado de segurança nacional que fugiu de qualquer controle? E se a publicação de tais revelações pudesse ser reduzida a um esforço estéril, como se os fatos não existissem mais?

Estou sugerindo o enredo para o romance de algum George Orwell do século 21? Dificilmente. À medida que caminhamos para um mundo totalmente digitalizado, coisas semelhantes poderiam ser possíveis em breve, não na ficção cientifica, mas no nosso mundo real, apenas pressionando um botão. Na verdade, os primeiros protótipos de uma nova técnica de ocultameno radical já estão sendo testados. Estamos mais perto de uma distópica realidade aterradora, que poderia ter sido o tema de romances futuristas imaginários. Bem-vindo ao buraco da memória.

Mesmo se um futuro governo cruzar novas linhas vermelhas e simplesmente assassinar os vazadores de informações sigilosas, outros sempre emergirão. Mas em 1948, em sua assustadora 1984, no entanto, Orwell sugeriu uma solução mais diabólica para o problema. Evocou um artificio tecnológico para o mundo do Grande Irmão (Big Brother) que chamou de buraco da memoria. Em seu futuro sombrio, exércitos de burocratas, trabalhando ironicamente no Ministério da Verdade, passavam suas vidas apagando ou alterando documentos, jornais e livros, a fim de criar uma versão aceitável da história. Quando alguém caía em desgraça, o Ministério da Verdade o excluía, e toda documentação relacionada com sua vida, ia para o buraco da memoria. Cada artigo ou noticia que mencionava ou registrava de alguma maneira sua vida era modificado para erradicar todo o indicio de sua existência.

No mundo pré-digital de Orwell, o buraco da memoria era um tubo de vácuo no qual velhos documentos eram fisicamente destruídos para sempre. As alterações de documentos existentes e a eliminação de outros asseguravam que nem mesmo as repentinas alterações de alianças e inimigos globais estabilidade representassem problema para os guardiões do Grande Irmão. Neste mundo imaginado, graças aos exércitos de burocratas, o presente era o que sempre havia sido e os documentos alterados comprovavam este fato, sem o risco de que memórias titubeantes pudessem argumentar em contrário. Qualquer pessoa que expressasse dúvidas sobre a verdade do presente seria marginalizada ou eliminada, sob acusação de “crime de consciência”.

Censura digital, governamental e corporativa


A maioria de nós acessa notícias, livros, músicas, filmes e outras formas de comunicação por meios cada vez mais eletrônicos. O Google já tem mais receita publicitária que o conjunto de todos os meios impressos dos EUA. Mesmo a venerávelNewsweek não publica mais uma edição em papel. E nesse mundo digital esta se explorando a possibilidade de um certo tipo de simplificação. Os chineses e iranianos entre outros, por exemplo, já implementaram estrategias de filtragem na web para bloquear o acesso a sites e material que não são aprovados pelos governos. Do mesmo modo (embora sem sucesso), o governo dos EUA bloqueia o acesso de seus funcionários ao Wikileaks e ao material divulgado por Edward Snowden, ainda que a censura não prevaleça em suas casas. Ainda não.

A Grã-Bretanha, no entanto, dará em breve um passo significativo, no que diz respeito ao que o cidadão pode ver na web, inclusive quando está em sua casa. Antes do fim do ano, quase todos os usuários de internet serão incluídos num sistema destinado a filtrar a pornografia. Por padrão, os controles também bloquearão o acesso a material violento, conteúdo relacionado a extremistas e terroristas, sites relacionados a anorexia, distúrbios alimentares e suicídios, assim como sites que mencionem álcool e tabagismo. O filtro também bloqueará material esotérico, embora grupos ativistas baseados no Reino Unidos exijam explicações.

E as formas de censura na internet patrocinadas pelos governos estão sendo privatizadas. Novos produtos comerciais, de fácil aplicação, garantem que uma organização não precise ser a NSA para bloquear conteúdos. Por exemplo, a Blue Coat é uma empresa-líder em “segurança” na internet é uma importante exportadora de tais tecnologias. Pode estabelecer facilmente um sistema para monitorar e filtrar todo o uso da internet, bloqueando sites por seu endereço www, por palavras-chaves ou mesmo por seu conteúdo. O software da Blue Coat é empregado, entre outros, pelo exército dos EUA, para controlar o que seus soldados veem quando deslocados ao exterior; e pelos governos repressivos da Síria, Arábia Saudita e Myanmar para bloquear ideia políticas do exterior.

Busca no Google…

Em certo sentido, o buscador do Google também poderia fazer desaparecer material. No momento, é simpático aos denunciantes. Uma rápida busca (0,22 segundos) produz mais de 48 milhões de hits sobre Edward Snowden, que se referem em sua maioria aos documentos filtrados da NSA. Alguns dos sites apresentam os próprios textos, etiquetados como Top Secret. Há menos de meio ano, somente membros de um grupo muito limitado no governo, ou conectado contratualmente com ele, poderiam ver coisas semelhantes. Agora, estão disponíveis em toda a web.

Buscador numero um na internet, o Google parece uma máquina para difundir maciçamente — e não suprimir — noticias. Coloque qualquer informação na web e é provável que o Google encontre-a rapidamente, agregando-a aos resultados de sua busca no mundo inteiro, às vezes em segundos. Mas como poucas pessoas pesquisam além dos primeiros resultados, o simples fato de estar presente ou oculto entre estes tem enorme significado. Já não basta fazer com que o Google note o que você produz. O que importa agora é conseguir que coloque o material suficientemente acima, na pagina de resultado das buscas. Se o seu site é o numero 47.999.999, numa pesquisa sobre Snowden, você pode dar-se por morto, praticamente desapareceu. Pense nisso como ponto de partida para as formas mais significativas de desaparecimento, que podem nos aguardar no futuro.

Ocultar algo aos usuários, reprogramando as maquinas de busca, é outro passo sombrio no futuro. Mais um é a eliminação efetiva de conteúdos, um processo que exigiria reprogramar os computadores que realizam a pesquisa. E se o Google se negar a implantar esta possível mudança em direção a buscas destrutivas, a NSA — que parece já ser capaz de projetar seus tentáculos dentro do buscador — poderia implantar sua própria versão de um código maligno, como já fez em pelo menos 50 mil casos.

Mas não se preocupe apenas com o futuro: uma estratégia de busca negativa já funciona, mesmo que seu objetivo atual, agir contra os pedófilos, seja fácil de aceitar. O Google introduziu recententemente um software que dificulta a busca de material relacionado a abuso infantil. Como disse o chefe da empresa, Eric Schmidt, o buscador foi programado para limpar mais de 100 mil palavras-chaves usadas por pedófilos para buscar pornografia infantil. Agora, por exemplo, quando os usuários fizerem pesquisas que possam estar relacionadas com abuso sexual, não encontrarão resultados que levem a conteúdo ilegal. Em seu lugar, o Google orienta para sites de ajuda e conselhos. Em breve presenciaremos essas mudanças em mais de 150 idiomas, de modo que o impacto seja verdadeiramente global, escreveu Schmidt.

Enquanto o Google reorienta as buscas de pornografia infantil para sites de aconselhamento, a NSA desenvolveu uma capacidade parecida. A agência controla um conjunto de servidores com o codinome Quantum, que se encontram na rede central da internet. Sua tarefa é reorientar objetivos, afastando-os dos destinos solicitados e redirecionando-os para sites preferidos pela agência. A ideia é: você digita o endereço de um site e é conduzido a outro, menos odiado pela agencia. Embora atualmente essa tecnologia seja usada para enviar potenciais jihadistas online a materiais islâmicos mais moderados, no futuro poderá ser empregada, por exemplo, para reorientar as pessoas que procuram noticias de site como a Al-Jazeera a outra agência, que se ajuste à versão dos fatos construída pelo governo.

… e destrói!

No entanto, as tecnologias de bloqueio e reorientação, que provavelmente serão mais sofisticadas no futuro, não constituem a maior ameaça. O Google já prepara o passo seguinte, a serviço de uma causa que quase todos aplaudirão. Está implementando tecnologia capaz de identificar imagens fotográficas de abuso infantil cada vez que aparecem em seu sistema, assim como tecnologia de comprovação capaz de verificar e eliminar vídeo ilegais. As ações da empresa para combater a pornografia infantil podem ser muito bem intencionadas, mas a tecnologia que esta sendo desenvolvida para tanto deveria nos aterrar a todos. Imagine se, em 1971, os Papéis do Pentágono, o primeiro documento sobre as mentiras da guerra do Vietnã a que a maioria dos norte-americanos teve acesso, houvessem sido eliminados. Se a Casa Branca de Nixon tivesse desaparecido com esses documentos, a história não teria seguido um caminho diferente, muito mais sombrio?

Ou considere um exemplo que já é realidade. Em 2009, muitos donos de leitores de livros digitais Kindle descobriram que a Amazon havia colocado suas mãos em seus aparelhos durante a noite e eliminado remotamente as copias de Revolução do Bichos e 1984 de Orwell (não é uma ironia). A empresa explicou que os livros, publicados por erro em suas maquinas, eram na realidade, copias dos romances vendidas ilegalmente. Da mesma maneira em 2012, Amazon apagou o conteúdo do Kindle de um cliente sem advertência prévia, afirmando que sua conta estava relacionada com outra conta que havia sido previamente encerrada por ir contra as políticas da empresa. Usando a mesma tecnologia, a Amazon tem agora a capacidade de atualizar livros em seu aparelho, com o conteúdo alterado. Depende da empresa informar os usuários a respeito ou não.

Além do Kindle, o controle remoto sobre outros aparelhos já é uma realidade. Grande parte dos softwares de nossos computadores comunica-se, em segundo plano, com servidores da empresa produtora, sendo sujeitos a atualizações automáticas que podem alterar seu conteúdo. A NSA utiliza malware, software maligno implantando remotamente em um computador, para alterar o modo de funcionamento da máquina. O código do vírus Stuxnet, que provavelmente danificou mil centrifugas usadas pelos iranianos para enriquer urânio, é um exemplo de como pode operar algo parecido.

Atualmente, cada iPhone já checa, com a sede central [da Apple], que aplicativos foram comprados; e sobre que links você clica rotineiramente, A Apple preserva-se o direito de desaparecer com qualquer aplicativo, por qualquer motivo. Em 2004, TiVo processou a Dish Network por entregar a seus clientes set-top boxes [equipamento para conectar televisões], que segundo a TiVo infringiam suas patentes de software. Apesar do caso ter sido solucionado em troca de uma grande indenização, como remédio inicial, o juiz ordenou a Dish que desativasse eletronicamente todos os 192 mil aparatos que havia instalado nas casas dos clientes. No futuro, pode haver cada vez mais meios para invadir e controlar computadores, alterar e fazer desaparecer o que está sendo lido, enviar os internautas a sites que não buscavam.

As revelações de Snowden, sobre o que faz a NSA para reunir informação e controlar a tecnologia, fascinaram o planeta desde junho, mas são apenas parte da equação. Como o governo ampliará seus poderes de vigilância e controle no futuro é uma história que ainda não foi contada. Imagine instrumentos para ocultar, alterar ou eliminar conteúdos com campanhas difamatórias para desacreditar ou dissuadir denunciantes. O poder que está potencialmente à disposição dos governos e corporações tornou-se mais evidente.

A possibilidade de ir além de alterar conteúdos, e modificar a maneira como as pessoas atuam também se encontra, obviamente, nas agendas governamentais e corporativas. A NSA já reuniu dados para chantagem espionando o acesso de muçulmanos radicais a pornografia digital. Também interceptou eletronicamente um congressista norte-americano sem possuir um mandato judicial. A capacidade de reunir informações sobre juizes federais, dirigentes do governo e candidatos presidenciais fazem com que os esquemas de chantagem de J. Edgar Hoover, no FBI da década de 50, parecerem tão pitorescos quando as meias soquete e saias poodle da sépoca. As maravilhas da Internet nos maravilham todos os dias. As possibilidades distópicas orwellianas da rede não tinha, até recentemente, chamado a nossa atenção da mesma forma. Elas deveriam.

Leia isso agora, antes que seja apagado

O possível futuro que espera os futuros vazadores de informação dos serviços de inteligência é aterrorizante. Agora, quase tudo é digital. Se grande parte do tráfico da internet mundial flui através dos Estados Unidos ou países aliados (ou da infra-estrutura de companhias norte-americanas no exterior); se máquinas de busca podem encontrar em questão de frações de segundos qualquer coisa; se, nos EUA, a Lei Patriótica e as decisões secretas do Tribunal de Supervisão da Inteligência Externaconvertem o Google e gigantes da tecnologia em enormes instrumentos do Estado de segurança nacional; e se tecnologias sofisticadas podem bloquear, alterar e apagar material digital, apertando apenas um botão, o buraco da memoria já não é mais ficção.

Revelações vazadas terão tão pouco sentido como velhos livros empoeirados no sótão, cuja existência é ignorada. Poste o que quiser. As leis de liberdade de expressão permite que você o faça. Mas que sentido haverá, se ninguém puder ler? Seu tempo seria melhor empregado parando em alguma esquina e gritando aos transeuntes. Num futuro já fácil de imaginar, um conjunto de revelações similares às de Snowden poderá ser bloqueado ou excluído com tanta rapidez que ninguém poderá republicá-las.

Tecnologia em contínuo desenvolvimento, se viradas 180 graus, poderão eliminar maciçamente informações e opiniões. A internet é um espaço amplo, mas não infinito. Está centralizando rapidamente informações nas mãos de poucas corporações, sob o controle de poucos governos e os EUA encontram-se no centro das principais rotas de trânsito da rede.

Agora, você deveria sentir um calafrio. Estamos vendo, em tempo real, como 1984 passa de uma fantasia futurista para um manual de instruções. Se isso ocorrer, não será necessário matar um futuro Edward Snowden. Ele já estará morto.


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