quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O capitalismo quer você


O Capitalismo quer apenas ser
o ar que você respira




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domingo, 27 de outubro de 2013

Ataques a direitos indígenas: ‘toda sociedade está em risco’

Antropólogos e pesquisadores ligados à Universidade de São Paulo (USP), à Universidade de Campinas (Unicamp) e a outras instituições de ensino superior do país publicaram, nesta quinta-feira (24), uma carta aberta em defesa do povo Guarani em que alertam: os ataques aos direitos indígenas são uma ameaça para toda a sociedade.



              




Os estudiosos consideram que as garantias dos povos tradicionais, estabelecidas pela Constituição de 1988, estão em risco devido ao avanço dos interesses econômicos, sobretudo no campo. E afirmam que os Guarani, até pela sua localização geográfica, são uma das etnias mais ameaçadas pela ofensiva.

"Com suas aldeias distribuídas em um vasto território, que abrange as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, e também algumas localidades na região Norte do Brasil, os guarani constituem hoje o maior povo indígena no país, com cerca de 65 mil pessoas. Entretanto, por ocuparem regiões com antigo histórico de colonização, e de grande interesse para exploração econômica, têm hoje apenas uma fração insignificante e fragmentada de seu território reconhecida pelo poder público”, diz o texto. "A falta de terras é causa fundamental do quadro de marginalização a que foram submetidos em todas essas regiões, onde sofrem com a violência, o preconceito e a falta de efetivação de direitos fundamentais de cidadania”.

A afirmação dos antropólogos faz referência à "má distribuição” das terras indígenas demarcadas no espaço territorial brasileiro. Os ruralistas, maiores inimigos dos índios em sua luta por demarcações, costumam argumentar que os povos tradicionais possuem 13% de todo o território nacional. Enquanto isso, ponderam, a área plantada se resume a 7% da superfície. Pesquisadores lembram, porém, que 98% das terras regularizadas pela União se encontram no Norte e no Mato Grosso – regiões que abrigam cerca de metade da população indígena brasileira. A outra metade está no Nordeste, Sudeste, Sul e na porção sul do Centro-Oeste. E está espremida em apenas 2% das aldeias demarcadas.

"Hoje, como ao longo dos últimos cinco séculos, grupos oligárquicos se esforçam em negar aos Guarani os seus direitos territoriais, com intuito de perpetuar as injustiças acumuladas ao longo de todo o processo de colonização do Brasil, evitando a construção de uma sociedade justa e solidária, que respeite seus povos indígenas”, argumentam os antropólogos. "Enquanto os ruralistas desenvolvem uma campanha para convencer a população brasileira de que são ameaçados pelas demarcações de terras, o país segue com um dos mais altos índices de concentração fundiária do mundo, cenário que se reverte no acúmulo de poder nas mãos de oligarquias agrárias e nas grandes desigualdades que assolam a sociedade nacional”.

Os antropólogos consideram que os ataques aos direitos indígenas são uma ameaça para toda a sociedade, pois respondem aos interesses de um grupo minoritário –os latifundiários– que busca apropriar-se privadamente das riquezas nacionais para seu próprio enriquecimento. "O drama humanitário pelo qual atravessam as comunidades nas quais realizamos nossas pesquisas não é tolerável em um Estado Democrático de Direito, e não cessará enquanto o poder público se recusar a enfrentá-lo com a seriedade e respeito que requer, preterindo a sua solução em proveito de interesses eleitorais”.


Carta no post anterior.
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Carta pública em defesa dos direitos do Povo Guarani

Confira a íntegra da carta dos antropólogos 
publicada originalmente no Adital, em 25/10/2013:


Foto: Carlos Penteado              


Nós, estudiosos do povo Guarani e outros pesquisadores, especialistas e professores, reunidos em São Paulo/SP entre os dias 16 e 18 de outubro, durante o Simpósio CEstA nas Redes Guarani, realizado pelo Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, vimos a público nos manifestar a respeito do grave contexto de ataque aos direitos indígenas que está hoje em curso, e em cujo epicentro encontra-se o impasse relacionado ao não reconhecimento dos direitos territoriais do povo Guarani.

Com suas aldeias distribuídas em um vasto território, que abrange as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, e também algumas localidades na região norte do Brasil, os Guarani constituem hoje o maior povo indígena no país, com cerca de sessenta e cinco mil pessoas. Entretanto, por ocuparem regiões com antigo histórico de colonização, e de grande interesse para exploração econômica, têm hoje apenas uma fração insignificante e fragmentada de seu território reconhecida pelo poder público. A falta de terras é causa fundamental do quadro de marginalização a que foram submetidos em todas essas regiões, onde sofrem com a violência, o preconceito e a falta de efetivação de direitos fundamentais de cidadania.

A história mostra como a mão de obra de milhares de Guarani foi utilizada para a construção do país, deixando contribuições que hoje consideramos como elementos fundantes da cultura brasileira. Hoje, como ao longo dos últimos cinco séculos, grupos oligárquicos se esforçam em negar aos Guarani os seus direitos territoriais, com intuito de perpetuar as injustiças acumuladas ao longo de todo o processo de colonização do Brasil, evitando a construção de uma sociedade justa e solidária, que respeite seus Povos Indígenas.

Enquanto os ruralistas desenvolvem uma campanha para convencer a população brasileira de que são ameaçados pelas demarcações de Terras Indígenas, o país segue com um dos mais altos índices de concentração fundiária do mundo, cenário que se reverte no acúmulo de poder nas mãos de oligarquias agrárias e nas grandes desigualdades que assolam a sociedade nacional.

Como pesquisadores que atuamos junto a algumas das mais respeitadas universidades brasileiras, temos a percepção clara de que os ataques aos direitos indígenas ora em curso são uma ameaça para toda a sociedade, pois respondem aos interesses de um grupo minoritário que busca apropriar-se privadamente das riquezas nacionais para seu próprio enriquecimento, e tornam nosso país palco dos mais graves desrespeitos aos direitos à vida, à dignidade, à diferença, envergonhando-nos a todos.

O drama humanitário pelo qual atravessam as comunidades nas quais realizamos nossas pesquisas não é tolerável em um Estado Democrático de Direito, e não cessará enquanto o poder público se recusar a enfrentá-lo com a seriedade e respeito que requer, preterindo a sua solução em proveito de interesses eleitorais. Nesse sentido, chamamos a todos os brasileiros para que nos empenhemos junto ao povo guarani e aos demais povos indígenas na defesa de seus direitos, para a construção de uma sociedade igualitária, multicultural e pluriétnica.

Dominique Tilkin Gallois – Professora-doutora em Antropologia Social na USP
Valéria Macedo – Professora-doutora em Antropologia Social na UNIFESP
Beatriz Perrone Moisés – Professora-doutora em Antropologia Social na USP
Marta Rosa Amoroso – Professora-doutora em Antropologia Social na USP
Sylvia Caiuby Novaes – Professora-doutora em Antropologia Social na USP
Renato Sztutman – Professor-doutor em Antropologia Social na USP
Fábio Mura – Professor-doutor em Antropologia Social na UFPB
Levi Marques Pereira – Professor-doutor em Antropologia Social na UFGD
Elizabeth Pissolato – Professora-doutora em Antropologia Social na UFJF.
Donatella Schmidt – Professora em Antropologia Social na Università degli Studi di Padova.
Marina Vanzolini – Professora-doutora em Antropologia Social na USP
Vanessa Lea – Professora-doutora em Antropologia Social na UNICAMP
Maria Inês Ladeira – Centro de Trabalho Indigenista, Mestre em Antropologia (PUCSP) e Doutora em Geografia Social (USP)
Daniel Calazans Pierri – Centro de Trabalho Indigenista, Mestre em Antropologia Social (USP)
Fabio Nogueira da Silva – Mestre e Doutorando em Antropologia Social pela USP
Spensy Pimentel – Doutor em Antropologia Social – USP
Diogo Oliveira – FUNAI – Doutorando em Antropologia Social – UFSC
Rafael Fernandes Mendes Júnior – Mestre e Doutorando em Antropologia Social pela USP
Lígia R. Almeida – Mestranda em Antropologia Social – USP
Amanda Danaga – Doutoranda em Antropologia Social -UFSCar)
Camila Mainardi – Doutoranda em Antropologia Social – USP
Adriana Testa – Doutoranda em Antropologia Social – USP
Alice Haibara – Mestranda em Antropologia Social – USP
Ana María Ramo y Affonso – Mestranda em Antropologia Social -UFF
Tatiane Klein – Mestranda em Antropologia Social – USP
Marcos dos Santos Tupã – liderança guarani e Coordenador Tenondé da Comissão Yvyrupa
Giselda Pires de Lima Jera – professora e liderança guarani
Algemiro da Silva Karai Mirim – professor e liderança guarani
Ariel Ortega – liderança e cineasta guarani
Carlos Papa Mirï Poty – liderança e cineasta guarani
Prof. Dr. Stelio Marras – Professor Doutor em Antropologia Social no IEB-USP
Aline Aranha – FFLCH-USP/ CEstA-USP
Jefferson dos Santos Ferreira – FFLCH-USP/ CEstA-USP
João Pedro Turri – ECA-USP/ CEstA-USP
André L. Lopes Neves – PPGAS/USP – CEstA-USP
Jan Eckart – PPGAS/ UFSCar
Guilherme Meneses – PPGAS-USP
Diógenes E. Cariaga – FUNAI
Lucas Keese dos Santos – Centro de Trabalho Indigenista, Mestrando em Antropologia Social – USP
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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Um escritor na periferia do mundo

Discurso já histórico de Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt de 2013.O país homenageado é o Brasil, personagem apresentado numa voz crítica e comprometida

Discurso agradou colegas nacionais e estrangeiros.

“O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.

O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro –é a alteridade que nos confere o sentido de existir–, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.

Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones.

Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.

Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.

Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania –moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade–, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…

Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios –o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.

Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 

Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 

E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.

O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais –ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 

A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.

Mas, temos avançado.

A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.

Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.

Nós somos um país paradoxal.

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo –amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.

Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos…

Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?

Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro –seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual– como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.”


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sábado, 12 de outubro de 2013

No coração da selva

Só recentemente reconhecemos imensa riqueza humanitária das civilizações indígenas. Depois de cinco séculos de canibalização, será possível um futuro comum?

Publicado originalmente em Outras Palavras, em 06/10/2013





Mesmo quando o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington escreveu O Choque de Civilizações, ele se referia a conflitos entre culturas relativamente extensas e vigorosas. Em sua classificação, o devoramento de civilizações por outras, como temos feito com as nações indígenas ao longo dos séculos, não poderia jamais receber o nome de choque; talvez nem de conflito, devido à brutal incompatibilidade técnica entre elas. Aqui a classe é de canibalização. Pois é nesses termos, bem mais amplos que os projetos de lei contra os quais se mobilizam agora os índios e amplos setores da sociedade brasileira, que gostaríamos de enquadrar a velha e até aqui insuperável questão indígena.

Parte da história está contada no indispensável Relatório Figueiredo, de 1967. Trata-se de uma compilação de crimes realizados sobretudo contra populações indígenas, escrito pelo procurador Jader de Figueiredo Correa a partir de dados de Comissão de Inquérito sobre a atuação do Serviço de Proteção aos Índios. O relatório, de 68 páginas, acompanha um processo de 20 volumes com 4.942 folhas, mais 6 anexos com 500 folhas.

Ali estão registrados cárcere privado e trabalho escravo de índios, tortura, roubo de terras, abuso sexual, esbulho, mortes em massa, guerra bacteriológica, ataque aéreo com dinamite, venda irregular de gado indígena etc. Os crimes, quase todos documentados e com testemunhas, muitas vezes foram mutuamente acobertados por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), inclusive com queima de arquivos praticada em geral pelos próprios servidores públicos do extinto órgão – que deu lugar à Funai ainda em 1967.

Nas palavras de Figueiredo, “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. (…) Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça.”

Tribos inteiras foram dizimadas, nisso que poderíamos chamar de genocídio à brasileira, em regimes democrático e ditatorial. Mais adiante o procurador afirma, com extrema lucidez: “A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato.” Irretocável. “A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível.”

Não precisamos voltar a Cabral para o registro de etnocídios em nosso vasto território. Além do extermínio patrocinado por portugueses e desses horrores compilados no relatório, que ocuparam algumas décadas do século 20, a reincidência criminosa da civilização ocidental contra as populações indígenas atravessou todos esses séculos e ainda ocorre nos dias de hoje.

Não são poucas as ocorrências de invasão por parte de grileiros, posseiros e fazendeiros, em diversas regiões do país, em conflitos que levam à morte de índios ou à expulsão deles de suas terras sagradas. Podemos encontrá-los na beira de estradas do Mato Grosso ou no centro de Porto Alegre, vidas em agonia, tristes imagens de seres humanos esbulhados de sua tradição milenar.

Canibalização civilizatória. Além das tribos contatadas, existem no Brasil dezenas de grupos indígenas que jamais trocaram miçangas ou ouro por espelhinhos , que sabem da existência de nossa subcivilização latino-americana (na classificação de Huntington…) apenas porque veem cruzar seus céus uns pássaros roncadores de estranhas asas, pois nunca as batem no ar como fazem a ararinha-azul ou a araponga-da-amazônia.

Segundo o IBGE, são 900 mil indígenas distribuídos por 305 povos, falam 274 línguas (já foram mais de mil) e ocupam apenas 13% do território que, num passado longínquo, dividiam inteiramente, entre flechadas e beijos, com centenas de outros povos já extintos. Mais os povos em isolamento voluntário – pelo menos 28 grupos de existência confirmada pela Funai.

Ainda há, portanto, no Brasil, milhares de seres humanos descendentes diretos dos povos originários da terra onde os brasileiros vivem – povos que nos últimos 10 mil anos conheceram no máximo a migração interna. Seus antepassados andavam por aqui antes de Maomé e Cristo terem nascido, antes dos livros do Antigo Testamento terem sido sequer sonhados, antes das pirâmides do Egito serem erguidas para a glória dos faraós e ainda muito antes das tabuinhas cuneiformes dos sumérios.

Nem Huntington lhes negaria a condição de civilização, possivelmente até no plural. São povos que dispensam a escrita, não precisam de história nem de literatura, porque, muito antes de nós, aprenderam algo que nunca conhecemos e que talvez nunca venhamos a descobrir: a arte de viver em natureza.

Tesouro étnico. Os povos originários são a memória anterior à humanidade, tal qual a conhecemos. Darcy Ribeiro disse que, no seu estudo de doutorado, fez amizade com um cacique capaz de recitar mais de mil nomes de sua árvore genealógica. Eles eram e são pela tradição, zelam por esse tesouro que é toda a existência de um tempo sem tempo, em especial os povos ainda fechados em seu círculo fora da história, como são os povos da floresta que ainda não tiveram contato com o Ocidente, nesses últimos 10 mil anos – para o bem deles próprios.

Essa é a imensurável riqueza confiada a nós, brasileiros (aqui incluídos os povos indígenas mais ou menos aculturados), pelos acasos da história. Que outro país tem a dádiva de conviver com suas matrizes culturais ainda vivas? Já exterminamos (nós e os portugueses) quase a totalidade desses “outros” de que nos jactamos, ao chamá-losnossos índios. Toda vez que nos cobram maior cuidado com esses povos originários, patrimônio vivo de toda a humanidade, ainda somos tentados a dar a resposta oferecida aos alemães, quando eles já estavam reconstituindo grande parte da Floresta Negra. Como afirmação de soberania e independência, dizíamos ter o direito de derrubar nossas matas, como eles derrubaram as deles. Por certo, queremos nos igualar também aos norte-americanos, que avançaram suas fronteiras agrícolas e de mineração até o extermínio praticamente completo de seus povos indígenas, patrocinado pelo Estado e com o apoio do Exército.

Já está mais que na hora de pensarmos em frear nosso avanço e começar o árduo e custoso trabalho de reconstruir o que estamos a ponto de perder por inteiro. Avançar mais para criar mais miséria, em nome da produção de minério e de grãos (o problema maior da fome nunca foi a falta de alimentos), é a prova cabal do fracasso da civilização ocidental, que até aqui não soube desenvolver um sistema econômico humanitário.

A conta desse holocausto civilizatório não pode mais recair sobre os ombros dos povos da floresta (sobre os ombros de mais nenhum povo), pois se estamos condenados a desaparecer sem o avanço contínuo da economia, deveríamos ter a humildade de aprender com quem sobreviveu, durante milênios, num equilíbrio homoestático com a natureza.

Se sobre genocídio já nada mais temos a aprender com alemães e estadunidenses, podemos ao menos tomar lições sobre como se reconstrói. São hoje 900 mil índios, mas dentro de vinte, trinta anos, poderão talvez ser 5 milhões. Será nossa maior riqueza humanitária, ao lado das populações tradicionais (incluindo as quilombolas), insuperável contribuição para a humanidade, a expressão real e concreta daquilo que muitos gostam de chamar de tolerância, num tom ufanista tal que poderíamos estendê-la até o Oriente Médio (suposto traço de caráter que no passado chamávamos de democracia racial).

Estamos chegando ao coração da selva, e lá não há trevas, mas nações indígenas milenares levando vidas fora do nosso alcance. Em nome do que seja, menos ainda da riqueza econômica, não podemos sacrificar as últimas reservas de uma humanidade mais feliz do que a nossa. Se isso acontecer, passaremos à história como coveiros da última nação indígena.

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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Carta aberta do povo Nambikwara à população brasileira

Fonte: Cimi - http://www.cimi.org.br
07/10/2013




Os europeus se julgavam os donos da terra, não respeitavam a vida comunitária dos povos que aqui viviam, não aceitavam sequer que estes povos possuíam alma, por serem portadores de culturas e religiões diferentes. Frei Bartolomé de Las Casas presenciou a invasão do Brasil e registrou (em 1511) a violência praticada contra os indígenas no século XVI:

"Certa vez os índios vinham ao nosso encontro para nos receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delicadas e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixes, de pão e de outras viandas, assim quanto tudo quanto puderam dar... Mas eis que os espanhóis passam a fio de espada, na minha presença e sem causa alguma, mais de três mil pessoas, homens, mulheres, crianças, que estavam sentadas diante de nós. Eu vi ali tão grandes crueldades que nunca nenhum homem vivo poderá ter visto semelhantes... Também na terra firme... na madrugada, estando ainda os índios a dormir com suas mulheres e filhos, os espanhóis se lançaram sobre o lugar, deitando fogo às casas, que eram comumente de palha, de sorte que queimavam todos vivos, homens, mulheres e crianças... Mataram a tantos que não se poderia contar e a outros fizeram morrer cruelmente... e a outros fizeram escravos e marcaram-nos com ferro em brasa..."
(LAS CASAS, 1984)

Em 1.560, Men de Sá, governador geral do Brasil, escreveu uma carta ao rei de Portugal contando com orgulho as suas façanhas na colônia: em uma noite, ele havia destruído e queimado uma aldeia próxima à vila, matado todos os indígenas que resistiram a este ataque e seu trunfo foi ter enfileirado os corpos ao longo de aproximadamente seis quilômetros de praia. E este é apenas mais um exemplo da violência que as pessoas que habitavam esta terra sofreram.

Os invasores travaram guerras contínuas e cruéis contra os indígenas. São Paulo, no séc. XVI, era um pequeno vilarejo e as expedições que se dirigiam ao interior do país eram chamadas de "bandeiras". Os bandeirantes eram pessoas especializadas em caçar e exterminar, ou escravizar os indígenas, ou quaisquer outros obstáculos que se opusessem à conquista do interior das terras brasileiras e suas riquezas.

Algumas das técnicas de extermínio utilizadas pelos europeus consistiam em: doar alimentos contaminados com doenças (varíola, gripe, tuberculose...) contra as quais os indígenas não tinham defesa; estupros; disseminação de bebidas alcoólicas; chacinas; invasão e apropriação dos territórios indígenas; devastação do meio ambiente; entre outras.

Apesar de se tratar de atrocidades ocorridas no início da colonização do Brasil, no Século XVI, os fatos narrados podem refletir o tratamento atual que os índios recebem em nosso país, portanto, qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência, é a pura realidade!

Os insaciáveis por acumular riquezas a qualquer custo, mesmo assumindo o alto preço de provocar enorme e irreversível devastação ao meio ambiente, assumem, também, o risco de exterminar com a vida dos povos indígenas e acabar com sua cultura milenar. Estes estão, freqüentemente, disfarçados de "Homens com boas intenções", dotados de um discurso hipócrita de que só querem contribuir com o desenvolvimento econômico de nosso país, quando na realidade só pensam nos benefícios próprios que poderão conquistar. Os homens e mulheres que se enquadram nesta descrição são os chamados "Ruralistas", que podem ser identificados perfeitamente como os "Bandeirantes Modernos", imbuídos no mesmo propósito de não reconhecer o índio como ser humano e cidadão brasileiro com direitos garantidos na Constituição Federal.

Estes novos "Bandeirantes Modernos" usam sua riqueza para se fortalecerem no meio político a fim de fazer valer suas vontades. A enorme Bancada Ruralista no Congresso Brasileiro é um exemplo claro de como uma minoria rica consegue eleger uma maioria no Legislativo para defender seus interesses.

As diversas Propostas de Emendas à Constituição e Projetos de Lei que visam abolir os direitos constitucionais dos povos indígenas foram propostas pela Bancada Ruralista. Dentre elas estão:

PECs no 038/99 e 215/00 - Propõem transferir a atribuição da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo;

PEC no 237/13 - Propõe permitir o arrendamento das terras indígenas para grandes produtores rurais;

Projeto de Lei Complementar no 227/12 - Propõe legalizar latifúndios e assentamentos dentro das terras indígenas;

Projeto de Lei 1.610/96 - Propõe permissão a mineração em territórios indígenas demarcados;

Todas estas propostas somente atendem aos interesses de empresários e produtores rurais e não correspondem aos nossos interesses como indígenas, habitantes originários das terras brasileiras. Autorizar que órgãos com interesses conflitantes como o Ministério de Desenvolvimento Agrário, Embrapa e FUNAI, devam decidir em conjunto sobre novas demarcações, será o mesmo que perpetuar a conclusão das demarcações de todas as Terras Indígenas, e, por conseqüência, perpetuar os conflitos agrários.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, ao ser promulgada, trouxe um capítulo exclusivo que reconhece os Direitos dos Índios:


CAPÍTULO VIII

DOS ÍNDIOS

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

(...)

§ 2o - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

(...)

Art. 232 (...)

Ainda, o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, preconiza que:

Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

Porém, depois de 25 anos de sua promulgação, a Constituição Federal Brasileira ainda não foi cumprida na sua totalidade. Existem diversas áreas de terras indígenas a serem demarcadas e a Bancada Ruralista propõe mudanças usando a desculpa que é para evitar conflitos agrários, quando na realidade é a ganância por mais terras e mais riquezas que alicerça as Propostas de Emendas à Constituição.

Depois de 500 anos de opressões, invasões, massacres e mortes sofridas por nós índios, apesar de tardio, houve o reconhecimento justo dos nossos direitos no Brasil. Permitir alterações que venham suprimir ou diminuir os direitos dos índios será um retrocesso na história da evolução da própria população brasileira.

O que evitará os conflitos agrários entre produtores e nós indígenas será a conclusão da demarcação de todas as terras indígenas conforme preceitua a Constituição Brasileira.

Entretanto, o que resolverá os conflitos agrários será a utilização mais racional e eficiente das terras NÃO INDÍGENAS E IMPRODUTIVAS das propriedades que estão em poder de grandes fazendeiros, muitos destes reconhecidos como RURALISTAS.

Como exemplo, pode ser citado o Município de Comodoro, no Estado de Mato Grosso, que tem 62% do total de sua área demarcada como Terra Indígena NAMBIKWARA, que, freqüentemente, sofrem pressão dos Ruralistas para serem exploradas economicamente. Todavia, dos 38% das terras remanescentes e NÃO INDÍGENAS, uma grande parte É IMPRODUTIVA OU SUBUTILIZADA, e está concentrada nas mãos de poucos proprietários que se quer moram no município ou trazem alguma vantagem econômica para a população comodorense.

ASSIM, SE ESSAS ÁREAS NÃO INDÍGENAS E IMPRODUTIVAS RECEBESSEM A MESMA PRESSÃO PARA PRODUZIR E FOSSEM TRANSFERIDAS PARA A POSSE E PROPRIEDADE DE QUEM REALMENTE QUER TRABALHAR, NÃO HAVERIA CONFLITOS AGRÁRIOS E A RIQUEZA SERIA DISTRIBUÍDA DE FORMA MAIS JUSTA EM NOSSO PAÍS. NEM MESMO, HAVERIA NECESSIDADE DE SE COGITAR A EXPLORAÇÃO ECONÔNICA DAS TERRAS INDÍGENAS OU A MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, BASTARIA CUMPRIR AS LEIS VIGENTES E FAZER TODAS AS PROPRIEDADES CUMPRIR SUA FUNÇÃO SOCIAL.

Além do mais, em regra, todo brasileiro tem alguma descendência ou ligação direta com algum antepassado indígena. Permitir que se cometessem injustiças com os índios seria o mesmo que permitir que se cometessem injustiças com alguém de nossa própria família.

Posto isto, o Povo Indígena Nambikwara do Município de Comodoro, Estado de Mato Grosso, representado pelos membros de todas as suas aldeias e associações, requerem o arquivamento do processo de análise de todas as PECs e Projetos de Lei que venham alterar a Constituição Federal e trazer prejuízos aos índios do Brasil, principalmente, a PEC 215.

Comodoro MT, 28 de setembro de 2013.

Assinam os Presidentes das Associações do Povo Indígena Nambikwara
Associação Nambikwara APINARÉ: Anael Nambikwara Halotesu
Associação Manduka HAIYÔ: Raquel Nambikuara Kithãulu
Associação Negarotê APINETA: Apolônio da Silva Terena
Associação Ikotindu Mamaindê: Nilo Mamaiandê
Associação Indígena KOLIMACÊ:
Sabanê, Tawandê, e Manduka: Valdir Sabanê
Associação Indígena Mamaindê ETMÃNDU: Paulo Eduardo Mamaindê

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7186

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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

As causas da grande mobilização indígena


Quais os projetos de mineradoras, madeireiras e ruralistas para avançar sobre territórios e direitos dos índios. Como tramitam, em silêncio, no Congresso Nacional

Publicado originalmente nos sites Outras Palavras e Carta Capital em 05/10/2013







A Mobilização Nacional Indígena, deflagrada ao longo desta semana, é uma luta pela defesa dos direitos indígenas adquiridos e para barrar uma avalanche devastadora, liderada pela Frente Parlamentar do Agronegócio. A luta é pela terra, sua posse e uso. A convocação foi da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e envolve organizações indígenas e indigenistas de diversas partes do país, agora articuladas e em luta.

A linha do tempo vai até as caravelas de Cabral, mas vamos tomá-la a partir deste ano, para compreender melhor o contexto atual. Em 16 de abril, cerca de 300 índios ocuparam o plenário da Câmara, em protesto contra a instalação de Comissão Especial para analisar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que torna praticamente impossível a demarcação das terras indígenas, ao tirar esta prerrogativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) e transferi-la ao Congresso Nacional.

Na ocasião o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), prometeu não instalar a comissão antes do final de agosto. A Casa criou então um grupo de trabalho para discutir a condição dos índios no Brasil, cujo relatório seria um subsídio importante para a decisão de constituir ou não a comissão. Integraram o grupo lideranças indígenas, deputados ruralistas e parlamentares que defendem os direitos dos índios. Segundo Lincoln Portela (PR-MG), mediador do grupo, “basicamente aprovamos a rejeição da PEC 215.” A rejeição, concluindo pela inconstitucionalidade do projeto, foi por unanimidade dos presentes, já que nenhum parlamentar da frente do agronegócio compareceu às reuniões.

Na noite de 10 de setembro, contrariando o parecer do grupo de trabalho criado por ele mesmo, Henrique Eduardo Alves instituiu a Comissão Especial para analisar a PEC 215. Alves estaria atendendo compromisso assumido com a bancada ruralista durante sua campanha para a presidência da Câmara. Muitos dos 27 deputados indicados então para a Comissão Especial integram a frente do agronegócio e são autores de projetos que suprimem direitos dos índios, como veremos.

Nessa semana da Mobilização, Alves pretendia instalar a Comissão Especial, com a indicação do relator e do presidente – mas teve de recuar diante das manifestações.

A PEC 215, de 2000, é de autoria do ex-deputado Almir Sá (PRB-RR), atualmente presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Roraima. Ela estabelece a competência exclusiva do Congresso Nacional para aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e ratificar as demarcações já homologadas – hoje atribuições exclusivas do Executivo, que as executa por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai). Na avaliação de organizações indígenas e indigenistas, na prática significará o fim de novas demarcações. O risco não seria apenas para o futuro, mas também para hoje, pois das 1.046 terras já demarcadas apenas 363 estão regularizadas. As demais, ainda em processo por vários fatores, ficariam com sua homologação na dependência do Congresso. “Como contamos nos dedos quantos congressistas defendem a causa indígena, com certeza nenhuma terra será demarcada”, considera Ceiça Pitaguary, líder do movimento indígena do Ceará.

“A PEC é flagrantemente inconstitucional”, afirmou Dalmo Dallari, professor de direito da Universidade de São Paulo, ao Instituto Socioambiental (ISA): ela não respeita a separação dos poderes. As demarcações e homologações são atribuições do Executivo, procedimentos de natureza administrativa; ao Legislativo compete legislar e fiscalizar. Para alguns antropólogos, o direito à ocupação dessas terras é originário, e está assegurado na Constituição – as demarcações são apenas reconhecimento desse direito pré-existente.

A opinião de Carlos Frederico Maré, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná vai na mesma direção. Ex-presidente da Funai, ele sustenta que a demarcação é um procedimento eminentemente técnico. Em entrevista ao ISA, disse que “a Constituição não deu direito à demarcação. Deu direito à terra. A demarcação é só o jeito de dizer qual é a terra. Quando se coloca todo o direito sobre a demarcação retira-se o direito à terra, porque então ele só existirá se houver demarcação. É isso que está escrito na PEC: que não há mais direitos originários sobre a terra. Muda-se a Constituição, eliminando-se um direito nela inscrito.”

O Projeto de Lei (PL) 1.610, de 1996, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas. Foi apresentado a pretexto de defender o “interesse nacional” (a ser explorado pela iniciativa privada, conforme o Código de Mineração). Se aprovado, irá se converter em lei complementar ao artigo 231 (Capítulo VIII) da Constituição. O senador pediu regime de urgência. Quer votar, portanto, sem muita discussão, e a matéria só não foi submetida à apreciação da Casa devido à mobilização em torno do tema. Na prática, talvez seja tão ou ainda mais danosa que a PEC 215. E não seria de duvidar que esta estaria sendo o boi de piranha, já que o governo mostrou-se receptivo ao PL 1.610.

Já o PL 227, de 2012, retrata cruamente um dos aspectos centrais do chamado “sequestro da democracia” pelas instituições que deveriam expressá-la. Foi proposto pelo deputado Homero Pereira (PSD-MT), ex-presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, a princípio com redação que visava dificultar as futuras demarcações de terras indígenas. Fazia-o diluindo atribuições da Funai e incluindo, entre as comissões encarregadas de definir novos territórios, os proprietários de terra. Já em sua origem era, portanto, anti-indígena.

Mas tornou-se muito pior, ao tramitar pela comissão de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural da Câmara. Sem que tenha havido debate algum com a sociedade, os deputados que integram a comissão transformaram inteiramente sua redação. Converteram-no num projeto de lei que, se aprovado, revogará na prática, pela porta dos fundos, o Artigo 231 da Constituição.

Tal dispositivo trata dos direitos indígenas. Reconhece “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Estabelece uma única exceção: em situações extremas, em que houvesse “relevante interesse público da União”a exclusividade dos indígenas seria flexibilizada e seus territórios poderiam conviver com outros tipos de uso. Esta possibilidade, rara, precisaria ser definida em lei complementar.

Na redação inteiramente nova que assumiu, o PL 227/2012 é transformado nesta lei complementar. E estabelece, já em seu artigo 1º, um vastíssimo leque de atividades que poderão ser praticadas nas terras indígenas. Estão incluídas mineração, construção de hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, oleodutos, gasodutos, campos de treinamento militar e muitos outros.

Um inciso (o VIII), de redação obscura, procura ampliar ainda mais as possibilidades de violação dos territórios índios. Estabelece que é também “de relevante interesse público da União” a “legítima ocupação, domínio e posse de terras privadas em 5 de outubro de 1988”. Embora pouco claro, o texto dá margem a uma interpretação radical. A data mencionada é a da entrada em vigor da Constituição – quando foram reconhecidos os atuais direitos indígenas. Estariam legitimados, portanto, os “domínios e posses de terras privadas” existentes antes da Carta atual. Em outras palavras, a legislação recuaria no tempo, para anular na prática as demarcações que reconheceram território indígena e afastaram deles os ocupantes ilegítimos.

A PEC 237, de 2013, é de iniciativa do deputado Nelson Padovani (PSC-PR), titular do PSC na Comissão Especial da PEC 215, integrante da comissão do PL 1.610 e um dos signatários do pedido de criação da CPI da Funai, uma das estratégias da Frente para enfraquecer o órgão federal, já penalizado por redução de verbas. Essa PEC, se aprovada, tornará possível a posse indireta de terras indígenas a produtores rurais na forma de concessão. Será a porta de entrada do agronegócio aos territórios demarcados, e essa possibilidade tem tirado o sono de indígenas e indigenistas.


A portaria 303, de iniciativa da Advocacia Geral da União (AGU) em 16/07/2012, é outro dispositivo que tolhe direitos indígenas, com tom autoritário, em especial no inciso V do art. 1º, em que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional (!), à instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, à expansão estratégica da malha viária, à exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e ao resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), projetos esses que serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai (grifos nossos).

É a pavimentação para o avanço econômico do capitalismo sem fronteiras, além de contrariar a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 1989, assinada pelo Brasil, a qual assegura o direito de os povos indígenas serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.

Todas essas iniciativas legais têm por objetivo possibilitar o avanço do agronegócio e da exploração de lavras minerais sobre as terras indígenas. Assim se permitiria inclusive a intrusão em territórios de nações não contatadas. Basta um simples olhar na autoria dos projetos, na trajetória negocial de seus autores e apoiadores, em suas relações comerciais com o agronegócio nacional e estrangeiro e na sua atuação articulada através de uma Frente Parlamentar para se ter certeza de que o interesse econômico é privado, setorista e excludente, em nada aparentado ao interesse nacional, do bem comum ou da União. Se há diversificação de interesses nos projetos, é na razão direta da fome, mas de lucros, do agronegócio, da bancada ruralista, das mineradoras, das madeireiras e empreiteiras.


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quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Depoimento de Afukaka Kuiukuro em Paris

Texto do blogue do jornalista Felipe Milanez, Carta Capital




Afukaka Kuiukuro: "Brasília não escuta a gente."



Nós plantamos a nossa própria comida. Não abandonamos aquilo que a gente planta pra comer. A gente continua fazendo o nosso beiju, o nosso sal e comendo o nosso peixe. Por isso, a gente se preocupa muito com as cabeceiras dos rios da nossa terra, como o rio Buriti. Os brancos já fecharam o rio Kuluene com barragem. Eles quererem fechar outros rios nossos para produzir energia.


No rio Kuluene a água já mudou muito. Não só por causa da barragem, mas pelos venenos que os fazendeiros jogam na lavoura de soja. Os peixes estão morrendo. Isso nos deixa muito preocupados.


Cada família que tem casa tem também suas roças. Todos nos plantamos para nos alimentar. Plantamos muita mandioca. Um tipo de mandioca que só serve para fazer mingau, algumas outras variedades para fazer beiju. Muita mandioca diferente. Tem outra que a gente chama de mandioca de verdade, depois a mandioca da traíra, a mandioca do pacuzinho. A gente tem 45 nomes de mandioca. São 45 diferentes, ainda não tem estudo sobre a variedade delas. Tem também tem milho, que só é plantado em terra preta.


Nossos avós sempre usaram a terra preta para plantar o milho. A plantação de abóbora, batata, milho tem que ser em terra preta, que é onde foi aldeia no passado. A terra é melhor. Tem quatro tipos de milho diferente que nos plantamos, e eles só crescem na terra preta. A gente planta também banana. Temos três variedades de batata diferente, a batata vermelha, a clara e a verde.

Quando acaba a plantação da mandioca, que é assim: plantou, arrancou, plantou, arrancou; aí a terra fica fraca. Como a terra está fraca, a gente planta para os nossos netos. Plantamos a semente do pequi. Os avós deixam pros netos, pro futuro.


Para plantar o pequi, primeiro a gente faz um desenho de um jacaré na terra, e dentro dele a gente planta várias sementes de pequi. Aí o pequi cresce bem. Quando sai a muda, a gente tira a muda do jacaré e vai plantar na roça. Esse pequi, ele tem muitas variedades. Variedades que não existem fora do Parque do Xingu. Uma delas é um pequi que não tem espinho. É muito bom, a gente gosta muito. Só tem no parque. Mas agora a Embrapa quer patentear. Mas isso é produto nosso, do nosso manejo, dos índios da região. A gente gosta muito de comer pequi. Tem pequi que a gente usa para fazer óleo, e a castanha também usamos para comer.


Na roça velha, quando fica capoeira, tem muito remédio. É muito importante para nós também. Quando a roça acaba, ali fica com muito remédio, muita planta, cipó, que a gente usa como remédio. Os mestres do remédio, que a gente chama Embuta Oto, usam toda essa área que era floresta e virou capoeira, para pegar remédio.


Então quando a gente derruba uma mata a gente faz comida. Depois, a gente planta pequi, vai ter um pequizal pros netos. Quando a gente não planta pequi, essa área vira remédio, fica uma mata de remédio. Se não for mata de remédio, daí cresce o sapé, que a gente usa para fazer o teto da casa. Depois de mais um tempo, ali virou floresta de novo. Essa área que foi roça volta a ser floresta. Na floresta que não foi cortada ainda tem muita coisa importante para nós, principalmente a copaíba. E também material para construção de casa.


Mas quando eu vejo soja, eu não entendo. Aquilo me preocupa muito. Eles tiram, jogam veneno. Tiram, jogam veneno. Todo ano, jogam veneno, tiram. Como é que vai fazer? Branco chega lá e fala "isso é meu, minha terra", e trata assim a terra.

Eles dizem que eles compram a terra, e eles tem papel pra mostrar. E ninguém pode mais ir lá dentro. Com a gente não é assim. A gente pode ir pra mata dos outros, a gente pode ir pra roça. A gente respeita, mas se precisar de alguma coisa, pode ir la buscar. Mas na terra dos brancos não. Se a gente precisar ir em outra aldeia, Kamaiura, Yawalapiti, se a gente for lá pescar, caçar algum bicho, não é errado. Mas pra vocês, eu não posso fazer. No Xingu, nos podemos andar por tudo ali.


Bacia do Xingu, está toda cheia de fazendeiro. Agora tá apertado, tem fazenda por todos os lados. Muitas aldeias ficaram de fora quando fizeram o Parque do Xingu, nossos lugares sagrados, além de aldeias dos Kapalalo. Ainda estamos recuperando. Mas a política do governo não deixa mais recuperar nossa terra. Querem mudar a lei, estão enfraquecendo Funai. Não estamos conseguindo recuperar nenhum lugar sagrado. Isso é uma preocupação muito grande minha. Antes era tudo mato. Hoje é tudo fazenda.

            
Tem jovem que está indo para a cidade estudar. Eu mandei meu neto estudar. Como eu não falo bem português, não sei escrever nem ler, é importante ele saber, para voltar pra aldeia e trabalhar para o povo, para ensinar mais os jovens. Esse é o meu pensamento. Para lutar, para defender a terra. A minha boca chega lá em Brasília e o ministro não escuta. No papel vale mais. Eu pensava isso quando mandei meu neto estudar. Ele vai aprender inglês, depois vai fazer faculdade, e vai voltar para a aldeia para defender o povo, para lutar.


Brasília não escuta a gente. Quando a gente vai pra Brasília, ninguém escuta a gente. A gente tem que sair pra outro país, como aqui onde a gente está, na França, pra ouvirem a gente. Porque o governo não quer ouvir a gente. E a Funai está ficando cada vez mais fraca. Brasília não acredita mais na gente, não confia na gente, no que a gente diz.

Antigamente, vocês tinham esses chefes também, os políticos. Mas agora são os fazendeiros que estão virando deputado e senadores. Eles estão lá, todos junto. Por isso que estão fazendo essa política só para eles.


Essa é a nossa luta. Para o nosso neto, nosso filho, para segurar a cultura, a nossa tradição. Eu não quero perder a nossa tradição, que tem lá no Xingu. 


Nunca esqueci as palavras de Orlando Villas-Bôas. Ele falou para mim: “Olha, Afukaká, quando você ficar grande, você vai ser chefe, tem que lutar pelos Kuikuro, e por qualquer aldeia que tenha aqui. Vocês tem que se unir.” Agora vai ter a mobilização em Brasília, e a gente está todo mundo junto. Está tendo reunião lá no Xingu, muita liderança está indo para Brasília. Vamos lá lutar pelos nossos direitos.

Não é que eu estou aqui fora criticando o governo do Brasil. Eu estou é contando o problema dos índios.




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