segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O Escritor é um cidadão comum

Na nossa sociedade do espetáculo, o escritor não tem mais a aura que o distinguia no passado, porque, entre outras razões, não está mais cercado por populações de analfabetos nem é o melhor produto para mercantilização. As grandes mídias, com o advento de novas tecnologias como a fotografia, o rádio, o cinema e a televisão, preferem mercadorias mais flexíveis e palatáveis ao gosto de públicos massificados. O lado bom desse processo foi situar o escritor na planície comum da humanidade, onde aliás sempre esteve e onde o êxito depende da elevada taxa de suor necessária para as grandes obras: muito trabalho. Essa mudança de percepção da atividade do artista, do escritor em particular, é o tema do artigo abaixo (MD).

Por Suzana Montoro, publicado originalmente no site Capitu.   




      Livros sobre escritores sempre estiveram na moda. Paralelo às biografias, editoras têm investido na publicação e reedição de volumes que tratam da correspondência entre autores, sejam eles amigos, sejam apenas conhecidos ou tenham estabelecido entre si um relacionamento epistolar de mestre e discípulo. Este gênero de literatura, digamos assim, é de grande valia para os estudos literários e levam a um entendimento mais aprofundado da obra já que elucidam o momento histórico e cultural do escritor, bem como os aspectos relacionados a circunstâncias de vida pessoal. São livros que situam o autor e sua obra. Mas além dos estudiosos, estes livros agradam também a uma outra parcela de leitores, os curiosos que, estimulados pela mídia, deliciam-se com a vida pessoal do escritor e suas idiossincrasias.
       O escritor é uma pessoa como outra qualquer e o livro, o fruto de seu trabalho. Simples assim. E deveria bastar. No entanto, não é o que ocorre. Quando aparece, passa a ser cultuado como avis rara. Nas entrevistas da imprensa existe a preocupação em buscar fatos prodigiosos ou passagens desconcertantes de sua biografia, numa tentativa de torná-lo atraente aos olhos do grande público ou de diferenciá-lo a qualquer custo. E quanto mais extravagante, melhor.
      Não há entrevista sem a indefectível questão: por que você escreve? Nunca se pergunta a um engenheiro por que ele constrói pontes, a uma nadadora por que ela nada ou a um médico por que opera. Porque gosta deveria ser a resposta primeira. Ou porque é o que sabe fazer, porque a vida lhe deu essa oportunidade, porque o pai ou a mãe tinham a mesma
ocupação, enfim, as respostas são diversas e a maioria delas, óbvias. Mas o escritor, no mais das vezes, procura por uma resposta original e de alguma maneira reveladora. Poucos respondem simplesmente que escrevem porque gostam (e gosto não se discute). E ainda por cima, quando podem, condenam a profissão como se fosse um desígnio divino do qual não conseguem escapar e que lhe traz noites insones, dias de aflição, perseguição de personagens e loucuras afins. Queixam-se e dizem-se inevitavelmente atados a esse destino nefasto, por assim dizer.
      Claro que há escritores e escritores. Falo de maneira generalizada e até mesmo padronizada. Não são todos os que se entregam aos mandos e desmandos da mídia. Há também aqueles que se esquivam o quanto podem. Será esta uma forma de fugir desse estereótipo ou, paradoxalmente, de cultuá-lo? Já que também estes recebem a instigante pecha de esquisitos. Pois parece haver uma crença difundida e generalizada de que escritores são esquisitos (até mesmo Chico Buarque teria afirmado isto!). Por que? Por que ele inventa histórias e faz parecer que são verdadeiras? Por que cria solitário um mundo paralelo que seus leitores irão habitar?

      Escrever é profissão, é ganha-pão (pelo menos, deveria ser). Nem mais nobre nem mais reles do que qualquer outra. Talvez mais divertida, isso sim. E certamente mais solitária que a maioria. Mas um ofício como outro qualquer. Com seus ossos e deleites. Seu glamour e seus entraves. Embora a mídia insista em fazer do escritor um personagem atraente e de alguma maneira alheio à uniformidade e ao fastio. Será este apenas um recurso mercadológico? O fato é que o escritor passa a ser, em alguns casos, mais importante do que seus textos. Não que ele não seja. É claro que é, afinal, é o pai da criança. Mas o que ele vende é o texto, não a sua imagem. O objeto de consumo é o livro e não o escritor. Livros falam por si. Ou, pelo menos, deveriam.
      Ainda que vaidoso, já que gosta de mostrar o que escreve (e quando não mostra, também o é por vaidade) e de certa forma insano, já que pretende viver de literatura num país de tão poucos leitores, o escritor é um cidadão comum. O que há de pujante em sua vida está nos livros que escreve. Caso contrário, tampouco os escreveria.



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sábado, 18 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - II

Nesta segunda parte do artigo, irrompe o personagem como potência máxima do estilo, mas este ainda responde às condições propiciadoras do determinismo e da liberdade. A dialética de sua dinâmica afinal se resolve por escolhas ditadas pela ética e pelo talento do autor, selando assim o grau de compromisso assumido por este diante do mundo. A reconfiguração do material selecionado será a sua resposta.

Por Marcelo Degrazia


O narrador é o ente libertador do escritor, o carcerário que abre a porta da prisão para sua saída à rua. Não estamos mais sob o comando de um império absolutista, mas os poderes do narrador são, em último caso, outorgados pela instância superior que dirige o espetáculo. Mas ambos deverão se movimentar pelas limitações determinadas por uma lei maior, a lei da rua.

Na busca do Santo Graal, eles, autor e narrador, queiram ou não, seguirão os comandos por vias de mão dupla, vias com sentido único e/ou becos sem saída, um cipoal de vias tão enredadas que poderíamos chamar de sintaxe da urbanidade. (Não pergunte o que é isso, apenas sinta uma cidade – a sua cidade preferida – caminhando dentro de você). 

Nesse caminho eles enfrentarão toda sorte de obstáculos, como lombadas, pardais eletrônicos, buracos no asfalto, desníveis, motoristas embriagados, a criança que se desprendeu da mão do pai, tachões, falta de placas de sinalização, semáforos enguiçados, trânsito parado, pistas bloqueadas por acidentes, paralelepípedos soltos, ruas sem pavimentação, passagens de nível, queda de barreira, carros estacionados em mão dupla, enfim toda sorte de oposições e dificuldades para a fluidez do trânsito na caótica urbanidade de nossas ruas (E tudo isso acontecendo dentro de você).

Poderíamos chamar esse trânsito caótico de vocabulário selvagem.

É na confluência desses dois eixos de linguagem – as vias fixas e seus acidentes – que o autor e sua entidade representativa, o narrador, deverão organizar o material 
previamente selecionado pelas instâncias superiores do autor. Chamamos isso de inconsciente e de razão, e incluímos também a pele, os membros, os sistemas e órgãos – e sobretudo as vísceras. A tarefa é pesada, por isso sempre se recomenda o número maior possível de gerentes-narradores e de vozes-escravas auxiliares (os personagens). Até porque, se o pai de todos (Homero) se utilizou de vários agentes de muitas gerações, porque o nosso escritor contemporâneo, com o tempo disponível de apenas uma vida sem certezas, prescindiria de auxílio tão valioso?

Embora no controle da situação, até onde é possível numa atividade em que o inconsciente dá as cartas e joga de mão, o autor delega parte de seu poder ao seu representante. Este, o narrador no uso da liberdade concedida, vai fiando a trama do bordado. Quanto maior a confiança e o entrosamento entre ambos, maior a desenvoltura e a liberdade do representante do autor na obra. Assim como este, o narrador também tem suas manias e particularidades, e ao abordar o material que lhe foi confiado, vai, a exemplo de um rapsodo homérico, imprimindo nele a sua marca.

Com a orientação do seu criador e o auxílio das vozes dos personagens, o narrador brinca de Deus. Inclusive quando
parece renunciar a todo poder, como é o caso do narrador de Samuel Beckett. Até alcançar a ordem consciente e, sobretudo, inconscientemente buscada pelo autor. O tipo de narrador, sua posição em relação aos materiais da história, sua constituição ôntica, sua origem social e sua formação política (ainda quando tudo isso não esteja claro na cabeça do escritor - pior pra ele!) produzirão de todo esse material um certo foco regulado pelo autor, e tão nítido e transparente quanto mais clareza o escritor tiver do seu processo de criação. 

Então, como estamos no âmbito de uma liberdade concedida, o estilo imprimido pelo narrador, com seus vocábulos selvagens, sua sintaxe urbanizada e suas inflexões de voz, constitui-se de um composto de materiais e modos transferidos a ele diretamente do espólio do autor, para formar isso que poderíamos então chamar de estilo outorgado, ou concedido, afinal o controle do jogo está sempre nos dedos da instância superior, sem a qual o cosmos literário não se realiza em todo seu complexo.

Mas, se bem lembramos, novos figurantes subiram ao tablado e ameaçam roubar toda a atenção do espetáculo: os personagens.

Ah, os personagens! Serão eles, então, os donos do estilo?

Nesses círculos infernais, descida que nem mesmo a Dante estava permitida, o amálgama furioso encontra o seu fundo, o seu reflexo, o seu espelho na mais aguda perspectiva. É aí que a luz emitida pelo autor e filtrada pela entidade do narrador, reunida novamente por uma espécie de prisma invertido na alma da personagem, afinal explodirá. Mas, para que o milagre se realize em toda sua potência, embora de papel, o personagem deverá ter peso, ainda que todo o seu peso de carne e ossos somados seja convertido na luz do personagem aparentemente sem história nem circunstância, tal qual, mais uma vez, o personagem becketiano. Pois será esse seu peso que deverá realizar a outra face do milagre, a de se constituir num ímã poderoso o suficiente para atrair e galvanizar, em torno de sua alma-armadura, os pulsares de luz emitido sobretudo do inconsciente do escritor.

Se o narrador é o filho do autor, os personagens são seus netos, a quem a deseducação, dentro dos limites da rua – ou da literatura – é permitida e até mesmo estimulada. Porque as leis que orientam e controlam os dois primeiros, estão todas suspensas no caso do personagem, ao menos num primeiro momento. E isso para que o escritor, consciente ou inconscientemente, faça sua escolha dentre as leis que melhor representem seu juízo, seus sentimentos, seus órgãos, suas vísceras. No caso dessas últimas em especial, cria suas próprias leis pancianas e quixotescas, para formar o cosmos de sua escatologia.

E aí, meus amigos, o personagem é todo estilo! São as pulsões mais fortes e puras traduzidas na linguagem, as revelações individuais dessas novas entidades da obra que tomam conta do tablado e, dentro dos
limites estabelecidos
pelos dois primeiros, erguem a história diante dos olhos do leitor. É impossível, no ponto em que chegamos, não fazer a relação metafórica dos conceitos da psicanálise com essas categorias narrativas, em que o escritor corresponderia ao ego, o narrador ao superego e o personagem ao id selvagem de todo esse amálgama. Pelas características deste último, não é de se estranhar que o personagem, ao expandir aqueles limites, inova.

Na constituição final do estilo, as marcas mais fortes (considerando que todas afinal partem do escritor) são gravadas pelo personagem, com mais ou menos determinismo... É aqui onde repousa e onde se resolverá a questão da liberdade. Nesse percurso da luz, conforme o núcleo emitente de seu facho, poderíamos classificar os escritores em lógicos, sentimentais, orgânicos e viscerais, conforme a intensidade maior de seu brilho, já que todos eles recebem e transmitem seus estímulos de todos os núcleos de sua pessoa. Mas colocar as coisas nesses termos, embora facilite do ponto de vista da análise, daria chance a um método cujo resultado prático seria uma visão engessadora do processo.

Penso que a melhor resposta para o estudo do estilo da obra, levando em conta todos os procedimentos do autor e as categorias aqui pinceladas, seria dada pela ótica da liberdade. Talvez essa poderosa e cegante lente, à luz da própria obra, poderia nos fornecer alguns resultados esclarecedores sobre o processo de criação. E de saída, a intuição nos diz que, na direção entre o juízo e as vísceras, o sentido corre mais fortemente do primeiro ao último.
Ou 
seja, quanto mais baixo e internalizado o facho de luz, mais fortes e ricas serão as cores de sua liberdade. Ou de outro modo: a liberdade, no gesto de projetar a luz através da linguagem, ganha mais força e velocidade quanto mais se aproxima das vísceras, do inferno, do âmago. O que nos leva a desconfiar que, embora se apresente mais lúcida na razão do sujeito da obra, a origem e toda sua força libertadora está nas infravias do indivíduo, ou naquilo que chamamos de amálgama furioso, o seu núcleo mais candente e poderoso. Mais um passo e libertamos a besta! Mas se ela irrompe em seu estado bruto, adeus obra, não sobra pedra sobre pedra, até porque o autor, nesse estado de paixão, não sentiria necessidade alguma dela.

Mas, como vimos anteriormente, o escritor, se não se precaveu com um plano de voo antes de iniciar a viagem, ainda assim, ao se utilizar da sintaxe urbana ara ordenar o fluxo selvagem das palavras, ainda assim é ele, por mais desmandos que promova o personagem, ainda assim é ele quem está no comando do processo. É verdade também que poderemos medir o seu grau de liberdade quanto mais perto ou longe ele esteja dos extremos. Isso é verificável por sua formalização dada ao material. Se mais perto da razão ou do juízo, mais controlado e educado sairá seu facho, mais redonda a frase, e, contrário senso, quanto mais perto das vísceras, maior será a força de sua liberdade, mais pontiaguda a frase, e, por consequência, mais frouxa a formalização do material. Os sentimentais e os orgânicos ficam no meio do caminho. Por isso mesmo, os escritores que mais mobilizam o leitor são justamente aqueles que emitem seus pulsares, se não de dentro, ao menos o mais próximo desse amálgama furioso. Ou, como diria James Joyce, e Clarice Lispector aproveitaria para o título-emblema de sua obra: perto do coração selvagem.

Isso nada tem a ver com juízo estético – afinal cada obra traz sua própria poética –, e sim com a liberdade que cada escritor concede a si mesmo na
escolhe e visão do material. Essa própria visão já é um selo qualificador
de liberdade, pois gradua a posição do autor diante das possibilidades de momento e orienta o tanto de liberdade permitida ao seu narrador. Até o limite de entregar as migalhas aos personagens, no caso de não permitir que estes assumam o controle do jogo, ainda que temporariamente, como por exemplo num fluxo de consciência. Talvez até por medo da liberdade, por tudo que implica a sondagem do desconhecido, ou por temor de perder o plano da obra rio abaixo.

Pois aqui entra, no fim das contas, o dado crucial para a formação do estilo da obra. No centro o temperamento, no entorno a formação, as referências, o xadrez de estrelas e suas correspondências nas galáxias de palavras, tudo enfeixando a sensibilidade, a inteligência, o talento. Isso tudo formará o homem que formará o estilo. E esse estilo, de certa forma, na forma da obra, expressará a visão do autor, ou o ponto de vista da obra a respeito de todo seu material abordado. Ajudaria bastante se pudéssemos acessar, inclusive, os artigos recusados nesse processo de juntar a matéria no quadrante da futura obra. Pois assim qualificaríamos melhor a liberdade e a orientação do escritor no tratamento do seu tema.

Em princípio, no sentido sartriano, todos partimos da mesma cota de liberdade, se aceitarmos a consciência como entidade totalmente aberta ao mundo, antes de aderir à matéria. A consciência, em seu fluxo permanente e vazio de sentido, só obtém sua existência objetiva quando adere à matéria do mundo. Mas já não somos mais consciências puras e a matéria do mundo que interessa ao escritor, em especial o ficcionista, é a matéria que já foi tocada pela mão humana. Ou seja, antes do encontro, o escritor já possui sentido, assim como a matéria de sua eleição. 

Por que ele se orientou para determinados artigos do mundo ao invés de outros? Aí começamos a adentrar no determinismo de origem, o que vem da experiência
acumulada, processo do escritor que em nada, do ponto de vista fenomenal, difere dos demais seres humanos, a não ser que sua especialidade já o adestrou a olhar a matéria do mundo de uma certa maneira até aqui, mas nada garantindo que não possa olhar amanhã de maneira diferente para os mesmos artigos. Estes, por sua vez, também guardam, de maneira explícita ou cifrada, a forma resultante das forças históricas, políticas e sociais que os determinaram até aqui, nada impedindo que o escritor, ou outro sujeito em seu lugar, amanhã lhe dê outro sentido.

Nesse encontro do sujeito com o seu objeto, quanto há de determinismo e liberdade?

Nosso assunto já começa a partir das escolhas feitas pelo escritor. É aí que sua liberdade ganha sentido. Pois com mais ou menos determinismo, com mais ou menos liberdade – a psicologia atua sobretudo em função do passado do escritor. Mais ou menos consciente, mais ou menos inconsciente, ele fará a escolha, e essa escolha trará a tônica de um estilo. A marca da liberdade, por onde podemos inferir o grau dela em suas escolhas, é o que ao fim nos dirá o quanto o escritor usou de liberdade em seus movimentos na realização da obra. 

Sem dúvida, a liberdade da escolha estará condicionada pelas limitações do material, pela experiência, pela posição social do escritor, por sua infância, etc., e disso dependerá o maior ou menor grau de determinismo e autonomia, não há como fugir. A liberdade, enquanto faculdade da consciência, em tese, é absoluta no seu estado de potência. Mas, enquanto força que se projeta em direção à escolha para se realizar, jamais será plena, ainda que a experiência materializada, enquanto fruição da própria escolha, nos ofereça a estupefaciente sensação de totalidade. Ainda assim será parcial e limitada pelo enquadramento anterior à experiência literária dado pelo escritor. E embora condenado à liberdade, como diria Sartre, não há garantia alguma de que fará a escolha mais acertada. Até porque, escolha certa para quem? E sob que ângulo de visão?

Antes de escolher o projeto a que se lançar, ele, de acordo mais uma vez com o filósofo francês, experimentará a angústia. Para além dos determinismos, o dele e o do material, o escritor estará diante das
questões: que mundo tenho diante de mim? como posso me posicionar diante dele? E mais: como devo me utilizar dele? Aí entramos no tema da ética, a base de toda liberdade refletida em si, no outro e no mundo. Portanto, ao escolher seu material, ao determinar seu ponto de vista, ao ordenar seu narrador e chicotear suas personagens com a sintaxe mais ou menos urbana e a palavra mais ou menos selvagem, ele estará escolhendo um mundo dentro de um mundo de possibilidades, criando um cosmos, ordenando a vida, ao menos os termos do código com o qual escolheu dialogar com a realidade à sua volta.

Se é um labirinto sem saída ou se é o convés de um iate para ondas aprazíveis, e tudo o mais que possa haver entre esses dois caminhos, só a experiência estética do estilo orientada pelo talento no uso de certa liberdade ética dirá. O leitor então saberá afinal com quem está falando, que gato ou lebre, que cordeiro ou lobo estarão tentando lhe vender por baixo da pele. Nessa experiência pode ser que o escritor, ao escapar do determinismo para mergulhar nas ondas turbulentas da liberdade, conforme o seu grau de determinismo, pode ser que esse salto angustiante seja vivenciado por alguns como liberdade demais, o tipo de condenação que provoca a angústia e logo uma possível paralisia. Para estes, então, será sempre preferível uma liberdade operativa, pragmática, e tanto melhor se ela for o fruto de uma constituição ética e livremente pactuada – até onde se é possível se ser livre na fatura e observação das leis.

Aplique-se isso à questão da (auto)biografia e se terá, por outro ângulo (mais fechado e profundo) uma ideia da enorme complexidade do problema.


Para não tirar nem dar toda a razão a Buffon, poderíamos, para retocar a sua máxima, chamar a colaboração de Ortega y Gasset e concluir: o estilo é o homem e a sua circunstância, aí incluídos o presente e o passado do escritor e do mundo, o material e sua angustiante abordagem agenciada pelo narrador e suas personagens, e aquelas duas condições propiciadoras expostas ali atrás (determinismo e liberdade), enformadas pela ética e pelo talento individual nos processos das escolhas.

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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - I

Ao ler um texto literário nos perguntamos de quem é o seu estilo. Do autor? Do narrador? Da personagem? Quem imprime as marcas do estilo na literatura, quem afinal é o dono da voz? O artigo a seguir, dividido em duas partes, é um exercício de especulação em torno dessas questões. A conclusão, a ser postada em breve, apresenta o estilo como uma espécie de certidão de compromisso do escritor diante do mundo.

por Marcelo Degrazia



Corpo de Heitor carregado de volta para Troia, cena da Ilíada,
obra fundadora da literatura ocidental

É possível um autor manter, ao menos por um par de livros, o mesmo estilo?

A pergunta já traz em si um grave problema de concepção, pois hoje em dia, ao menos para os leitores mais exigentes, o autor até pode ter o seu estilo. No caso de uma biografia talvez não haja dúvida, o leitor espera que o estilo da obra apresente uma tal formalização, que podemos atribuir com segurança tratar-se do estilo do autor. Se a obra vem toda ela vazada num mesmo padrão, sua força de convencimento será sem dúvida maior. Pode até não ser o nosso entendimento da verdade o que ali vai anotado, mas sairemos dela aptos a repetir o velho bordão italiano: si non è vero, è ben trovato.

No jogo biográfico, portanto, o estilo joga um papel importante ao sinalizar para o leitor a veracidade do relato, ao menos como pensado pelo autor. Um estilo peculiar passará facilmente a impressão de que estamos diante da voz verdadeira deste, embora num segundo momento possamos até duvidar do que ele afirma. Em todo caso, nos sentimos diante do autor, a prova é o estilo, independente do quanto ele tenha aberto o coração e a mente. Se mentiu ou distorceu os fato de modo consciente para evitar prejuízo à sua imagem, o fez na própria voz, situação ainda mais grave no caso da autobiografia.

A contraprova, seguindo a lógica inversa do exposto acima, é quando o escritor apresenta ao longo dos episódios biográficos, se não mudanças bruscas de estilo, ao menos solavancos e travadas súbitas, hiatos, superficialidade e ligeireza indevida, sintaxe confusa, amplificação de situações e temas sem justificativa, excesso de detalhes, etc.

Se bem caracterizadas as fraturas no estilo, o leitor se vê autorizado a pôr em dúvida o relato e a conjecturar sobre os possíveis motivos desses tropeços, com mais razão ainda se dispuser de fontes divergentes. Aqui é bastante presumível que a psicologia do autor deve ter um papel importante, com o propósito de tornar nebuloso ou até mesmo de esconder o rabo do bicho engolido.

Ainda que o autor negue de modo consciente, ou até por isso mesmo, nessa sua estratégia de despiste apontarão ao menos o focinho e as orelhas do escondido, pois o conflito entre o dever ou a necessidade de contar e o interesse ou o benefício em encobrir acaba se configurando na linguagem com aquelas características.

Se o autor, ao contrário, oculta de maneira deliberada o tema no mínimo perturbador, quando não francamente contrário aos seus interesses, tal estratégia se manifestará em geral numa linguagem superficial, rala de argumentos e num tom muitas vezes pueril. Essas inconsistências de estilo, típicas no encobrimento – o emaranhado ou o superficialismo da linguagem –, também se manifestam em outras áreas do conhecimento, sobretudo quando o autor não domina o mínimo necessário de seu assunto para aprofundar o estudo. No discurso psicanalítico, imaginamos, o disfarce encobridor acionado pelo paciente deve atingir um alto grau de desvio.

Isso sem considerar a biografia de encomenda, situação em que o autor muitas vezes assume papel de cúmplice na execução dos crimes contra a linguagem e a consciência do leitor. A contratação de um especialista na arte de escrever – o ghost writer – dificulta bastante a investigação das pistas. Num contexto mais amplo, ainda teríamos de considerar a influência do mercado nos casos de encomendas claramente orientadas por interesses comerciais.




Mas e na literatura ficcional, como fica essa questão?

A princípio e em princípio, o leitor, quando ataca um livro de ficção, está interessado na história e na maneira como ela vai sendo narrada, só num segundo plano (geralmente o plano ocupado em primeiro lugar pelos críticos) talvez busque chegar ao dono da voz. Mas seu caminho será árduo, e, conforme a sofisticação do relato, poderá ficar perdido já no início da caminhada, pois o leitor não especializado, assim como familiares e amigos do criminoso, em geral comete o erro básico de todo aprendiz de detetive em literatura: confundir a voz do narrador com a do autor.

Afinal quem é o dono do estilo: o autor do livro? o narrador da história? ou o personagem que a vive?

Lá em antigamente, quando se sabia que a Ilíada e a Odisseia não eram obras de um mesmo autor, mas o resultado de séculos de narrativas orais recolhidas e formalizadas, não se cogitaria a questão do estilo do autor frente a um material tão rico e vívido. E talvez aceitassem de muito bom grado - caso discutissem a questão - a liberdade de Homero, se foi ele de fato o compilador e artífice das aparas e encaixes, para imprimir traços pessoais na organização do material. Afinal, seria um custo bem razoável a ser pago pela maravilha de desfrutarem de toda aquela tradição reunida em livros. O pagamento justo pelo esforço do poeta seria a fama, valor bastante inferior ao prazer proporcionado pela leitura dos episódios encadeados com arte. 

Talvez da incompreensão desse fato fundador da literatura ocidental tenha resultado o equívoco de se buscar coerência estilística na obra dos autores posteriores, cuja formulação lapidar coube ao conde de Buffon no século XVIII: o estilo é o homem.

Sem dúvida, obras monumentais como as de Virgílio, Dante, Cervantes e Shakespeare colaboraram e muito para essa ilusão do francês e de seus adeptos. Mas se o critério de Buffon recebesse aplicação rigorosa, teríamos de escolher, entre dois caminhos, um deles: não é mais o mesmo, o homem que percorreu de cabo a rabo a obra, ou esta, 
por inépcia de seu criador, apresenta falhas e desníveis em seu estilo.

Assim é porque as obras, ao longo de sua fatura, são tão desiguais quanto aquelas obras fundadoras atribuídas a Homero. É impossível ler Eneida sem ficar com o travo na língua de que estamos diante de um pasticho literário das epopeias gregas, em que pese o talento extraordinário de seu autor. Hoje, numa cultura pós-pós-moderna, isso já não tem grande importância, uma vez que não se condenam recursos como o pasticho, a referência e a alusão. Ao contrário, são até valorizadas, pelo conceito da intertextualidade, as obras que nascem da costela de outra, como é o caso da origem de Enéas. 

Ilustração de Gustave Doré
para Divina Comédia
Para muitos, sentimos uma queda de tensão na passagem do primeiro para o segundo volume da Divina Comédia, talvez porque os assuntos infernais da vida humana nos atraiam mais do que a beatice do mundo cristão, em que pagãos como Virgílio não têm acesso. O poeta, ao bloquear a passagem do seu mestre ao paraíso, além de passar de maneira estratégica à segunda etapa de seu método, bloqueia junto uma série de assuntos e formas de tratamento própria daquele mundo pagão. 

A mesma queda ocorre na segunda parte do Quixote, embora o maravilhamento que experimentamos com o lance metaficcional do autor - ao entregar ao seu anti-herói cavalheiresco o primeiro volume com as histórias vividas pelo próprio protagonista - seja um dos pontos altos da obra. 

Já o Bardo Imortal, além de ter sido um voraz pilhador de obra alheia, também apresentou um variado cardápio de pratos, cujos sabores não despertam na língua o mesmo prazer, seja de uma peça para outra, seja dentro da mesma peça.

Poderíamos enfileirar exemplos sem fim, como o caso de obras gigantescas também no tamanho, como é o caso de Proust, quando o empuxo narrativo ao final de Em Busca do Tempo Perdido já não é mais o mesmo dos primeiros volumes. Tudo para provar o que já está sugerido na própria frase de Buffon: o ser humano muda ao longo da vida, logo... o estilo é o homem que muda... 

Não vem ao caso esmiuçar as razões das mudanças, como o longo tempo na fatura de certas obras, e até mesmo a mudança de concepções literárias do autor, basta verificar a ocorrência, em especial nas obras mais longas, ou em obras diferentes do mesmo autor realizadas em diferentes épocas.

Buffon, talvez por estar empenhado demais com as espécies botânicas para enfeitar o jardim do rei, talvez por esse seu olhar científico sobre as espécies zoológicas e botânicas, não
Buffon: "O estilo é o próprio homem"
percebeu que, além dos animais descenderem de outros animais, antecipando os estudos de Darwin e Lamarck (pesquisadores científicos que ajudariam mais tarde a acelerar a percepção das mutações das espécies...), não percebeu que a mudança dos homens, que já se acelerava no seu tempo industrioso, acabaria provocando também a mudança do conceito de obra. Que deixou de designar, em especial com o Modernismo, apenas o conjunto de peças de um mesmo autor ao longo de uma vida (implícita aí a noção de unidade existencial, filosófica e de estilo), mas passou a designar também e sobretudo a peça individual. 

Obra autônoma e auto-referente foram conceitos surgidos para embasar o enfoque isolado da obra, em certa medida desligado do ambiente e do tempo passado (tradição), numa espécie de poética autotélica impulsionada pelo Formalismo Russo. E aí, com mais clareza, ocorre o desligamento crescente da noção fixa de estilo, como explicação da obra em seu conjunto a partir do autor, da época ou da escola, para render os seus melhores frutos quando aplicada individualmente a cada obra, ou a cada peça da obra, esta agora guardando da antiga noção apenas a ideia de conjunto de peças de um mesmo autor.

Quem é agora o dono do estilo?

Vamos recuar à origem ocidental do problema: a epopeia homérica. O estilo do poeta, a contribuição pessoal, única e subjetivamente intransferível (abstraindo o fato de que mesmo as escolhas de um Homero também obedeciam à certa tradição no trato da matéria poética) na composição final das obras, embora imprimisse um cunho individual a elas, não subtraía os estilos individuais dos aedos antepassados que haviam criado e desenvolvido os cantos ao longo das gerações. 


Imaginemos que isso fosse um dado ao alcance de sua pequena e seleta plateia de leitores. As alterações no estilo, as mudanças de tom, as interpolações como o canto sete da Ilíada - com a enfadonha lista das famílias nobres que
Aquiles cura Pátroclo
participavam da guerra pelo lado grego, seriam perfeitamente aceitáveis e reconhecíveis para esse público instruído. Os estudos filológicos e a estilística estão aí para sustentar o argumento de que tais obras são na realidade uma mescla de diferentes estilos. Portanto, ainda que limada aqui e ali para o encaixe, de acordo com a noção poética construída por um indivíduo (Homero) dentro da história de seu tempo, ainda assim elas por certo conservam traços de estilo de seus colaboradores ancestrais, mesmo que hoje nos fosse impossível deslindá-los completamente.

Diferentes autores, diferentes narradores, diferentes personagens... diferentes estilos. A tal ponto que não resistimos: é então possível afirmar que a primeira obra recolhida em livro (Ilíada) de que se tem notícia no Ocidente, de acordo com o conceito que temos atualmente de livro, autoria e estilo, foi criada por diferentes vozes, bem como hoje esperamos de um autor contemporâneo. Com a diferença de que agora temos um nome apropriado para designar esse aspecto da composição, nome de um conceito para celebrar a diversidade de origem, a multiplicidade de vozes, a interação de sujeitos, o nivelamento dos discursos numa mesma ou em diferentes claves hierárquicas, ou seja: a polifonia. A obra fundadora da literatura ocidental, portanto, tem em sua origem diferentes registros de timbres.

Naturalmente, fica por discutir o aspecto ideológico (a visão de mundo) implícito no nivelamento do material aplicado por interesses estratégicos, narrativos e estilísticos do autor (Homero). A orientação unívoca dessa voz dominante (agora a principal) resultou sem dúvida no rebaixamento das demais; no extremo, até quase o seu apagamento. O termo “polifonia” parece impróprio aqui, se aplicado em seu rigor máximo, pois em princípio o que o verniz poético do autor realiza é justamente a obtenção de um ponto de vista unificador de todo o material compilado, seguindo as pegadas de certa tradição ao agrado das elites de seu tempo. 

No entanto, o rebaixamento das distintas vozes e a eliminação de matérias divergentes, hipótese bastante plausível na passagem da oralidade para o registro escrito, não eliminam os elementos originais ainda presentes na obra. Ao contrário, num primeiro momento os desfiguram, para num segundo momento reconfigurarem-nos. De qualquer forma, o material genético aportado pelas vozes originais continua presente depois da operação poética realizada pelo autor. Além dos aspectos anotados acima, referentes a certas quebras e desnivelamento das partes, estudos minuciosos nos registros mais antigos das obras (até onde permitem as pesquisas atuais nos campos da linguística, da filologia, da estilística, da poética, da etnologia, da história, etc.), já comprovaram a presença de outras vozes em sua composição.

Apesar de tudo, é possível afirmar com segurança que as primeiras obras literárias de que se tem notícia no Ocidente, embora demorássemos mais de dois mil anos até que Baktin apresentasse a palavra juntamente com a formulação do seu conceito a partir da obra de Dostoiévski, e apesar do verniz homogeneizador de um Homero, apesar disso tudo é possível afirmar que essas primeiras obras da literatura ocidental, sob a ótica de sua constituição, em certa medida já nasciam polifônicas.

E agora, de quem é o estilo?

Voltando ao parágrafo anterior: o coro de vozes na antiguidade, sobretudo pela compilação e organização do
Representação idealizada de Homero
poeta que pode acidentalmente ter recebido o nome de Homero, não tinha a função de democratizar a abordagem de seus assuntos, como ocorre atualmente na literatura ocidental, por exemplo, em especial a partir do escritor russo, só para ficarmos no modelo desenvolvido por Baktin. Podemos até mesmo conjecturar que nesse tipo de arranjo poético, pela própria posição social e política ocupada pelo poeta em seu meio, é bem provável que muito material contemporâneo ao que entrou no cânone deve ter ficado à margem nesse processo. 

Então, assim como certas sutras jamais integrariam o Corão, e os livros chamados apócrifos jamais serão recepcionados no corpus do Antigo nem do Novo Testamento, assim também a visão de uma sociedade grega, em torno dos séculos oito e sete antes de Cristo, jamais admitiria em seu corpo os cantos estranhos ou divergentes à constituição de seu organismo, afinal o estilo é o homem, e a sua saúde é também e sobretudo uma razão de Estado.

E o que hoje de manhã tem a ver com tudo isso?

A dedução lógica disso tudo pode ser expressa numa nova pergunta: não podemos afirmar, para atenuar a culpa de Homero e suas vítimas ou possíveis comparsas, se queremos defender a liberdade subjetiva do indivíduo e do autor contemporâneo, que embora na literatura atual haja polifonia de vozes, os cantos desses coros recebem sua modulação de uma voz superior, e que em última análise a clave interpretativa originária - o princípio ordenador do material - é o diapasão ortolinguístico o tempo todo na ponta dos dedos do escritor? 

Para abusar mais um pouco da paciência do leitor, podemos dizer que o autor contemporâneo, ao colocar em marcha os conceitos e princípios informadores de sua futura obra, em certo nível, seguindo sempre as instruções e o ritmo de seu inconsciente, está, com a ajuda de todo o arsenal operativo da razão (por que afinal alguma força estetizante tem que pôr em ordem as rebeldias do inferno), está se colocando na posição original do pai fundador da literatura ocidental, só para ficarmos em nosso hemisfério.

Portanto, o autor, ao praticar a sua regência sinfônica das múltiplas vozes, está pondo em operação todo um complexo de notas e vibrações internas nascidas do amálgama furioso da alma, para constituir uma resposta (ou visão de mundo) que será entregue feito uma partitura para o novo regente: o leitor. Este deverá realizar o seu trabalho de decifração dentro dessa bela e libertadora camisa-de-força que é o cosmos do autor, o fruto desse complexo em ação que, se não ofender os criadores em seu panteão, bem poderíamos chamar de complexo de Homero. Cada um, segundo as notas biográficas pessoais, realizando uma versão própria (ou edição, que no nosso caso aqui seria o mais apropriado), imprime no material a sua própria marca.

E então, já dá para saber quem é o dono do estilo?

(em breve, a segunda parte do artigo)

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