sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Complexo de Homero - I

Ao ler um texto literário nos perguntamos de quem é o seu estilo. Do autor? Do narrador? Da personagem? Quem imprime as marcas do estilo na literatura, quem afinal é o dono da voz? O artigo a seguir, dividido em duas partes, é um exercício de especulação em torno dessas questões. A conclusão, a ser postada em breve, apresenta o estilo como uma espécie de certidão de compromisso do escritor diante do mundo.

por Marcelo Degrazia



Corpo de Heitor carregado de volta para Troia, cena da Ilíada,
obra fundadora da literatura ocidental

É possível um autor manter, ao menos por um par de livros, o mesmo estilo?

A pergunta já traz em si um grave problema de concepção, pois hoje em dia, ao menos para os leitores mais exigentes, o autor até pode ter o seu estilo. No caso de uma biografia talvez não haja dúvida, o leitor espera que o estilo da obra apresente uma tal formalização, que podemos atribuir com segurança tratar-se do estilo do autor. Se a obra vem toda ela vazada num mesmo padrão, sua força de convencimento será sem dúvida maior. Pode até não ser o nosso entendimento da verdade o que ali vai anotado, mas sairemos dela aptos a repetir o velho bordão italiano: si non è vero, è ben trovato.

No jogo biográfico, portanto, o estilo joga um papel importante ao sinalizar para o leitor a veracidade do relato, ao menos como pensado pelo autor. Um estilo peculiar passará facilmente a impressão de que estamos diante da voz verdadeira deste, embora num segundo momento possamos até duvidar do que ele afirma. Em todo caso, nos sentimos diante do autor, a prova é o estilo, independente do quanto ele tenha aberto o coração e a mente. Se mentiu ou distorceu os fato de modo consciente para evitar prejuízo à sua imagem, o fez na própria voz, situação ainda mais grave no caso da autobiografia.

A contraprova, seguindo a lógica inversa do exposto acima, é quando o escritor apresenta ao longo dos episódios biográficos, se não mudanças bruscas de estilo, ao menos solavancos e travadas súbitas, hiatos, superficialidade e ligeireza indevida, sintaxe confusa, amplificação de situações e temas sem justificativa, excesso de detalhes, etc.

Se bem caracterizadas as fraturas no estilo, o leitor se vê autorizado a pôr em dúvida o relato e a conjecturar sobre os possíveis motivos desses tropeços, com mais razão ainda se dispuser de fontes divergentes. Aqui é bastante presumível que a psicologia do autor deve ter um papel importante, com o propósito de tornar nebuloso ou até mesmo de esconder o rabo do bicho engolido.

Ainda que o autor negue de modo consciente, ou até por isso mesmo, nessa sua estratégia de despiste apontarão ao menos o focinho e as orelhas do escondido, pois o conflito entre o dever ou a necessidade de contar e o interesse ou o benefício em encobrir acaba se configurando na linguagem com aquelas características.

Se o autor, ao contrário, oculta de maneira deliberada o tema no mínimo perturbador, quando não francamente contrário aos seus interesses, tal estratégia se manifestará em geral numa linguagem superficial, rala de argumentos e num tom muitas vezes pueril. Essas inconsistências de estilo, típicas no encobrimento – o emaranhado ou o superficialismo da linguagem –, também se manifestam em outras áreas do conhecimento, sobretudo quando o autor não domina o mínimo necessário de seu assunto para aprofundar o estudo. No discurso psicanalítico, imaginamos, o disfarce encobridor acionado pelo paciente deve atingir um alto grau de desvio.

Isso sem considerar a biografia de encomenda, situação em que o autor muitas vezes assume papel de cúmplice na execução dos crimes contra a linguagem e a consciência do leitor. A contratação de um especialista na arte de escrever – o ghost writer – dificulta bastante a investigação das pistas. Num contexto mais amplo, ainda teríamos de considerar a influência do mercado nos casos de encomendas claramente orientadas por interesses comerciais.




Mas e na literatura ficcional, como fica essa questão?

A princípio e em princípio, o leitor, quando ataca um livro de ficção, está interessado na história e na maneira como ela vai sendo narrada, só num segundo plano (geralmente o plano ocupado em primeiro lugar pelos críticos) talvez busque chegar ao dono da voz. Mas seu caminho será árduo, e, conforme a sofisticação do relato, poderá ficar perdido já no início da caminhada, pois o leitor não especializado, assim como familiares e amigos do criminoso, em geral comete o erro básico de todo aprendiz de detetive em literatura: confundir a voz do narrador com a do autor.

Afinal quem é o dono do estilo: o autor do livro? o narrador da história? ou o personagem que a vive?

Lá em antigamente, quando se sabia que a Ilíada e a Odisseia não eram obras de um mesmo autor, mas o resultado de séculos de narrativas orais recolhidas e formalizadas, não se cogitaria a questão do estilo do autor frente a um material tão rico e vívido. E talvez aceitassem de muito bom grado - caso discutissem a questão - a liberdade de Homero, se foi ele de fato o compilador e artífice das aparas e encaixes, para imprimir traços pessoais na organização do material. Afinal, seria um custo bem razoável a ser pago pela maravilha de desfrutarem de toda aquela tradição reunida em livros. O pagamento justo pelo esforço do poeta seria a fama, valor bastante inferior ao prazer proporcionado pela leitura dos episódios encadeados com arte. 

Talvez da incompreensão desse fato fundador da literatura ocidental tenha resultado o equívoco de se buscar coerência estilística na obra dos autores posteriores, cuja formulação lapidar coube ao conde de Buffon no século XVIII: o estilo é o homem.

Sem dúvida, obras monumentais como as de Virgílio, Dante, Cervantes e Shakespeare colaboraram e muito para essa ilusão do francês e de seus adeptos. Mas se o critério de Buffon recebesse aplicação rigorosa, teríamos de escolher, entre dois caminhos, um deles: não é mais o mesmo, o homem que percorreu de cabo a rabo a obra, ou esta, 
por inépcia de seu criador, apresenta falhas e desníveis em seu estilo.

Assim é porque as obras, ao longo de sua fatura, são tão desiguais quanto aquelas obras fundadoras atribuídas a Homero. É impossível ler Eneida sem ficar com o travo na língua de que estamos diante de um pasticho literário das epopeias gregas, em que pese o talento extraordinário de seu autor. Hoje, numa cultura pós-pós-moderna, isso já não tem grande importância, uma vez que não se condenam recursos como o pasticho, a referência e a alusão. Ao contrário, são até valorizadas, pelo conceito da intertextualidade, as obras que nascem da costela de outra, como é o caso da origem de Enéas. 

Ilustração de Gustave Doré
para Divina Comédia
Para muitos, sentimos uma queda de tensão na passagem do primeiro para o segundo volume da Divina Comédia, talvez porque os assuntos infernais da vida humana nos atraiam mais do que a beatice do mundo cristão, em que pagãos como Virgílio não têm acesso. O poeta, ao bloquear a passagem do seu mestre ao paraíso, além de passar de maneira estratégica à segunda etapa de seu método, bloqueia junto uma série de assuntos e formas de tratamento própria daquele mundo pagão. 

A mesma queda ocorre na segunda parte do Quixote, embora o maravilhamento que experimentamos com o lance metaficcional do autor - ao entregar ao seu anti-herói cavalheiresco o primeiro volume com as histórias vividas pelo próprio protagonista - seja um dos pontos altos da obra. 

Já o Bardo Imortal, além de ter sido um voraz pilhador de obra alheia, também apresentou um variado cardápio de pratos, cujos sabores não despertam na língua o mesmo prazer, seja de uma peça para outra, seja dentro da mesma peça.

Poderíamos enfileirar exemplos sem fim, como o caso de obras gigantescas também no tamanho, como é o caso de Proust, quando o empuxo narrativo ao final de Em Busca do Tempo Perdido já não é mais o mesmo dos primeiros volumes. Tudo para provar o que já está sugerido na própria frase de Buffon: o ser humano muda ao longo da vida, logo... o estilo é o homem que muda... 

Não vem ao caso esmiuçar as razões das mudanças, como o longo tempo na fatura de certas obras, e até mesmo a mudança de concepções literárias do autor, basta verificar a ocorrência, em especial nas obras mais longas, ou em obras diferentes do mesmo autor realizadas em diferentes épocas.

Buffon, talvez por estar empenhado demais com as espécies botânicas para enfeitar o jardim do rei, talvez por esse seu olhar científico sobre as espécies zoológicas e botânicas, não
Buffon: "O estilo é o próprio homem"
percebeu que, além dos animais descenderem de outros animais, antecipando os estudos de Darwin e Lamarck (pesquisadores científicos que ajudariam mais tarde a acelerar a percepção das mutações das espécies...), não percebeu que a mudança dos homens, que já se acelerava no seu tempo industrioso, acabaria provocando também a mudança do conceito de obra. Que deixou de designar, em especial com o Modernismo, apenas o conjunto de peças de um mesmo autor ao longo de uma vida (implícita aí a noção de unidade existencial, filosófica e de estilo), mas passou a designar também e sobretudo a peça individual. 

Obra autônoma e auto-referente foram conceitos surgidos para embasar o enfoque isolado da obra, em certa medida desligado do ambiente e do tempo passado (tradição), numa espécie de poética autotélica impulsionada pelo Formalismo Russo. E aí, com mais clareza, ocorre o desligamento crescente da noção fixa de estilo, como explicação da obra em seu conjunto a partir do autor, da época ou da escola, para render os seus melhores frutos quando aplicada individualmente a cada obra, ou a cada peça da obra, esta agora guardando da antiga noção apenas a ideia de conjunto de peças de um mesmo autor.

Quem é agora o dono do estilo?

Vamos recuar à origem ocidental do problema: a epopeia homérica. O estilo do poeta, a contribuição pessoal, única e subjetivamente intransferível (abstraindo o fato de que mesmo as escolhas de um Homero também obedeciam à certa tradição no trato da matéria poética) na composição final das obras, embora imprimisse um cunho individual a elas, não subtraía os estilos individuais dos aedos antepassados que haviam criado e desenvolvido os cantos ao longo das gerações. 


Imaginemos que isso fosse um dado ao alcance de sua pequena e seleta plateia de leitores. As alterações no estilo, as mudanças de tom, as interpolações como o canto sete da Ilíada - com a enfadonha lista das famílias nobres que
Aquiles cura Pátroclo
participavam da guerra pelo lado grego, seriam perfeitamente aceitáveis e reconhecíveis para esse público instruído. Os estudos filológicos e a estilística estão aí para sustentar o argumento de que tais obras são na realidade uma mescla de diferentes estilos. Portanto, ainda que limada aqui e ali para o encaixe, de acordo com a noção poética construída por um indivíduo (Homero) dentro da história de seu tempo, ainda assim elas por certo conservam traços de estilo de seus colaboradores ancestrais, mesmo que hoje nos fosse impossível deslindá-los completamente.

Diferentes autores, diferentes narradores, diferentes personagens... diferentes estilos. A tal ponto que não resistimos: é então possível afirmar que a primeira obra recolhida em livro (Ilíada) de que se tem notícia no Ocidente, de acordo com o conceito que temos atualmente de livro, autoria e estilo, foi criada por diferentes vozes, bem como hoje esperamos de um autor contemporâneo. Com a diferença de que agora temos um nome apropriado para designar esse aspecto da composição, nome de um conceito para celebrar a diversidade de origem, a multiplicidade de vozes, a interação de sujeitos, o nivelamento dos discursos numa mesma ou em diferentes claves hierárquicas, ou seja: a polifonia. A obra fundadora da literatura ocidental, portanto, tem em sua origem diferentes registros de timbres.

Naturalmente, fica por discutir o aspecto ideológico (a visão de mundo) implícito no nivelamento do material aplicado por interesses estratégicos, narrativos e estilísticos do autor (Homero). A orientação unívoca dessa voz dominante (agora a principal) resultou sem dúvida no rebaixamento das demais; no extremo, até quase o seu apagamento. O termo “polifonia” parece impróprio aqui, se aplicado em seu rigor máximo, pois em princípio o que o verniz poético do autor realiza é justamente a obtenção de um ponto de vista unificador de todo o material compilado, seguindo as pegadas de certa tradição ao agrado das elites de seu tempo. 

No entanto, o rebaixamento das distintas vozes e a eliminação de matérias divergentes, hipótese bastante plausível na passagem da oralidade para o registro escrito, não eliminam os elementos originais ainda presentes na obra. Ao contrário, num primeiro momento os desfiguram, para num segundo momento reconfigurarem-nos. De qualquer forma, o material genético aportado pelas vozes originais continua presente depois da operação poética realizada pelo autor. Além dos aspectos anotados acima, referentes a certas quebras e desnivelamento das partes, estudos minuciosos nos registros mais antigos das obras (até onde permitem as pesquisas atuais nos campos da linguística, da filologia, da estilística, da poética, da etnologia, da história, etc.), já comprovaram a presença de outras vozes em sua composição.

Apesar de tudo, é possível afirmar com segurança que as primeiras obras literárias de que se tem notícia no Ocidente, embora demorássemos mais de dois mil anos até que Baktin apresentasse a palavra juntamente com a formulação do seu conceito a partir da obra de Dostoiévski, e apesar do verniz homogeneizador de um Homero, apesar disso tudo é possível afirmar que essas primeiras obras da literatura ocidental, sob a ótica de sua constituição, em certa medida já nasciam polifônicas.

E agora, de quem é o estilo?

Voltando ao parágrafo anterior: o coro de vozes na antiguidade, sobretudo pela compilação e organização do
Representação idealizada de Homero
poeta que pode acidentalmente ter recebido o nome de Homero, não tinha a função de democratizar a abordagem de seus assuntos, como ocorre atualmente na literatura ocidental, por exemplo, em especial a partir do escritor russo, só para ficarmos no modelo desenvolvido por Baktin. Podemos até mesmo conjecturar que nesse tipo de arranjo poético, pela própria posição social e política ocupada pelo poeta em seu meio, é bem provável que muito material contemporâneo ao que entrou no cânone deve ter ficado à margem nesse processo. 

Então, assim como certas sutras jamais integrariam o Corão, e os livros chamados apócrifos jamais serão recepcionados no corpus do Antigo nem do Novo Testamento, assim também a visão de uma sociedade grega, em torno dos séculos oito e sete antes de Cristo, jamais admitiria em seu corpo os cantos estranhos ou divergentes à constituição de seu organismo, afinal o estilo é o homem, e a sua saúde é também e sobretudo uma razão de Estado.

E o que hoje de manhã tem a ver com tudo isso?

A dedução lógica disso tudo pode ser expressa numa nova pergunta: não podemos afirmar, para atenuar a culpa de Homero e suas vítimas ou possíveis comparsas, se queremos defender a liberdade subjetiva do indivíduo e do autor contemporâneo, que embora na literatura atual haja polifonia de vozes, os cantos desses coros recebem sua modulação de uma voz superior, e que em última análise a clave interpretativa originária - o princípio ordenador do material - é o diapasão ortolinguístico o tempo todo na ponta dos dedos do escritor? 

Para abusar mais um pouco da paciência do leitor, podemos dizer que o autor contemporâneo, ao colocar em marcha os conceitos e princípios informadores de sua futura obra, em certo nível, seguindo sempre as instruções e o ritmo de seu inconsciente, está, com a ajuda de todo o arsenal operativo da razão (por que afinal alguma força estetizante tem que pôr em ordem as rebeldias do inferno), está se colocando na posição original do pai fundador da literatura ocidental, só para ficarmos em nosso hemisfério.

Portanto, o autor, ao praticar a sua regência sinfônica das múltiplas vozes, está pondo em operação todo um complexo de notas e vibrações internas nascidas do amálgama furioso da alma, para constituir uma resposta (ou visão de mundo) que será entregue feito uma partitura para o novo regente: o leitor. Este deverá realizar o seu trabalho de decifração dentro dessa bela e libertadora camisa-de-força que é o cosmos do autor, o fruto desse complexo em ação que, se não ofender os criadores em seu panteão, bem poderíamos chamar de complexo de Homero. Cada um, segundo as notas biográficas pessoais, realizando uma versão própria (ou edição, que no nosso caso aqui seria o mais apropriado), imprime no material a sua própria marca.

E então, já dá para saber quem é o dono do estilo?

(em breve, a segunda parte do artigo)

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