A Noite dos Jaquetas-Pretas



Orelha:

            Sabe-se que o mundo juvenil é permeado por sofrimentos, por desacertos, por angústias de toda ordem; sabe-se que não é o melhor período da vida. Jovem, é-se estimulado à concorrência, à disputa, à obtenção da vantagem. Isso, porém, quase nunca é objeto de reflexão literária; os escritores, em geral, preferem os temas ditos “adultos”, porque há muito não conseguem descobrir em si mesmos um jovem que já viveu.
            Neste livro de Marcelo Degrazia, a quem vi crescer e aperfeiçoar-se na escrita, narra-se uma juventude exasperada de dissonâncias, e o espaço simbólico em que isso transparece é o campo de futebol. Ali, no que deveria ser apenas um esporte saudável, vemos que com facilidade podem aflorar as perversidades, as neuroses e os conflitos até então subjacentes.
            Num estilo rápido, direto, bastante dialogado, mas que abre espaços para momentos de intenso lirismo, A noite dos jaquetas-pretas é um excelente exemplo de como não há temas maiores ou menores, na literatura; há, sim, bons e maus escritores. E Marcelo Degrazia é dos bons.
            O leitor será recompensado com este livro; ganhará em humanidade e, por que não, em esperança – a qual, aliás, é a reflexão final da novela. 
           
            Porto Alegre, inverno de 2007
            Luiz Antonio de Assis Brasil 




trecho do livro:


Cheguei na escola meia hora mais cedo. Os curiosos que sabiam da rixa tinham feito o mesmo. Me cumprimentavam de longe, como se eu fosse um gladiador condenado aos leões. Em troca, olhava para eles como se fossem urubus às voltas de carniça. Fiquei no portão principal, o único lugar para uma noite como essa.
Alfredo e Paulo vieram até mim.
–– Algum deles já chegou? –– eu disse.
Paulo apontou com um movimento de cabeça o Mongol e o Pato na outra calçada.
O último, ao me ver, virou o bico. O outro olhou para mim com indiferença afetada, mexia em alguma coisa no bolso da calça. Estavam com jaquetas pretas sobre a camisa do time, a suástica bordada no ombro.
–– E ele? –– Eu não conseguia mais dizer o nome do saco de músculos.
–– Foi até a secretaria entregar isso –– disse Alfredo ao me passar um panfleto.
Era de Vera, explicou Paulo. Como a edição do jornal do bairro só saía aos sábados, ela redigira algumas notas e viera distribuí-las na entrada da escola. 
–– Lê –– disse ele.
O panfleto falava das brigas de torcidas, da violência de grupos que ela chamava de gangues neonazistas, do crescente conflito entre jovens de bairros de periferia, com brigas muitas vezes à mão armada, quando não eram casos de linchamento. A droga estava no meio de tudo. As causas eram a miséria, a falta de polícia, a impunidade, a educação precária e a ausência de oportunidades sociais. Antes de concluir o panfleto, fazia uma dura acusação contra a banda podre da polícia, recriminava os agentes corruptos chamando-os de cúmplices e facilitadores do crime organizado. 
Ao  final, referia-se à nossa escola como palco de uma briga anunciada, onde as tais forças entrariam mais uma vez em ação. Comparava o trio triturador ao Eixo da Segunda Guerra Mundial: Mongol representaria o Japão de Hiroito, o Pato, a Itália de Mussolini, e Busta, a Alemanha de Hitler. Achei um exagero a comparação, mas gostei.
Um enorme “BASTA AO FASCISMO!”, em vermelho-sangue, concluía o panfleto.
Procurei-a com o olhar. Ela estava no fim das grades, os últimos panfletos nas mãos.
–– É corajosa –– disse Alfredo.
Fui ao encontro dela. O modo como distribuía os papeluchos era o de quem dedicava a vida a uma causa. Os panfletos eram acompanhados de palavras breves, com entusiasmo. Ficou satisfeita ao me ver.
Com os últimos nas mãos, olhou para o que eu segurava.
–– Gostou?
–– Demais!... Você tá se arriscando.
Ela abriu um sorriso de orgulho:
–– Alguém precisa ser o primeiro.
–– Mas você nem estuda aqui.
Entregou um panfleto a mais um aluno e voltou-se para mim com energia.
–– Não importa, precisamos combater o fascismo cada vez que levantar a cabeça. Ele é o mal!
Suas palavras tinham um calor contagiante, rimavam com a forte expressividade de seus dedos magros e ágeis.
–– Mas por que está surgindo logo aqui?
Vera pôs em mim uns olhos verdes e misteriosos de mar.
–– Ele pode surgir a qualquer hora, em qualquer lugar. É ilusão imaginar que nunca estará onde nós estamos, pensamos que isso acontece somente aos outros. As razões disso são a memória perdida, a história apagada, o esquecimento.
Dei um passo em sua direção.
–– Mas por que no nosso país?
Ela olhou para os lados antes de continuar.
–– As sementes do terror florescem onde encontram determinadas condições sociais.
A seguir, fez uma breve apresentação de motivos, num tom que lembrava o do professor na TV.
Quando terminou, eu disse:
–– Bem, mas você não devia procurar antes um organismo .. uma entidade... a Comissão dos Direitos Humanos... o Partido Verde... o dos Trabalhadores... sei lá!...
O rosto dela brilhou, como se fosse encandecer-se.
–– Pra lutar contra a violência não é preciso carteirinha –– e sorriu. –– Não precisamos de ordem oficial pra agir. Até porque, nem todos estão de acordo em chamar isso –– e apontou o panfleto em minha mão –– de fascismo. Isso, pela própria natureza, muda sempre de forma, disfarçado sob a máscara de nomes novos. Precisamos identificar e lutar contra essas forças onde quer que apareçam.
E depois de me fitar em silêncio nos olhos:
–– Precisamos acabar com o conformismo. Mas usando a imaginação,  sem violência.
Eu me senti tocado. Era um recado para mim e os rapazes.
–– Mas às vezes você não tem como fugir –– me desculpei. –– É força das circunstâncias.
Entregou dois panfletos a uma mulher da rua, curiosa com o movimento diante da escola, queria um para a vizinha. Em seguida, voltou-se mais uma vez para mim, com uma expressão dura mas doce.
–– Sempre tem uma saída que não seja pela violência. Devemos usá-la apenas quando a nossa vida está em risco. Veja o exemplo de Gandhi, sem um único tiro mobilizou toda a Índia com a política da resistência passiva e da não-violência. Suas únicas balas foram as palavras, o instrumento de sua pregação até livrar o povo do jugo inglês.
Fez uma pausa enfática e sentenciou:
–– O fruto da paz é a liberdade.
Sem jeito, tentei dizer algo.
–– Você acha então que nós deveríamos...
Mas não soube continuar a frase.
–– Acho que devem ao menos procurar esgotar os meios pacíficos. Opor violência à violência só aumenta o mal, ainda que aparentemente e a curto prazo os resultados possam parecer favoráveis –– concluiu ela.
Minhas mãos tremiam. Escondi o panfleto nas costas.
–– Mas esses caras não entendem outra linguagem que não seja porrada –– afinal consegui dizer. –– Com eles, as palavras morrem no vento, por isso precisam de uma resposta dura.
Deu um panfleto a uma adolescente que passava por ali de bicicleta e parara no meio-fio para acompanhar o barulho.
–– Quando a multidão enfurecida, em Chauri-Chaura, na greve contra um aumento de impostos, incendiou um posto policial, Gandhi, apesar do protesto de seus companheiros, condenou o movimento. Ele acabou preso, mofou seis anos na prisão, mas nem por isso apelou pra violência. Quando voltou pra política, anos depois, organizou a grande marcha para o mar, de Ahmedhabad a Dandi, continuando a luta pelos direitos de seu povo até a libertação final.  
–– Talvez fosse melhor...
–– Não tenho mais tempo.
Distribuiu os últimos panfletos e desapareceu na rua, o escuro pontuado pelas luzes de mercúrio. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu e-mail não será divulgado.