Romance

SINOPSE DE AS COSTELAS DE EVA
(ver trecho abaixo)




Onde termina a realidade e onde começa a ficção? Este é o tema principal do romance “As Costelas de Eva”. Sua estrutura está montada “em abismo”, livro dentro do livro, em que as relações do mundo “real” repercutem no interior do universo “ficcional”, e vice-versa. A trama parte do conflito entre dois escritores, o mestre e o discípulo, que se desenrola através de capítulos publicados semanalmente em um jornal. Esses capítulos são os “livros” dentro do livro.
O tema é desenvolvido em torno de duas linhas-mestras. A primeira é o triângulo amoroso entre os escritores (as costelas) e Atma (a Eva). Como sugere o título do romance, ela é a personagem nutriz de ambos, suas soluções temáticas e formais para as novelas policiais dos autores é que possibilita e garante o sucesso de suas carreiras. Os episódios desse plano estão no “livro real”, em que as personagens de “carne e osso” estão sujeitas ao princípio da realidade do leitor, embora as repercussões no plano “ficcional”.
A segunda linha-mestra é a relação entre as personagens do plano “ficcional”, dos “livros” dentro do livro. Nesse segmento o tema ganha realce no debate entre “criador e criatura”, em que os conceitos de autor e personagem são questionados, com a inversão da perspectiva. Nestas situações a realidade e a ficção se entrelaçam, criando um terceiro plano dentro do romance; os diálogos entre autores e suas criações são a zona de fronteira em que essas linhas desaparecem. Os dois planos acabam convergindo definitivamente no desfecho da trama. Aqui emerge a pedra de toque do tema principal, em que se dilui a primazia do real sobre a ficção, quando ambas são colocadas num mesmo plano de indução do comportamento humano, com reflexos diretos na vida das personagens. Nos últimos capítulos isso se materializa na inusitada conclusão: não somente os autores criam, mas eles são também criaturas de suas próprias personagens.


Trecho de As Costelas de Eva
menção honrosa do prêmio SESC de literatura, 2011




            Daniel Danessi tirou às pressas o carro da garagem, afundou o pé no acelerador e os pneus guincharam feito golfinhos na matinê da tarde, o trajeto até a casa de Catarina já todo vivo na mente. O telefonema dela, numa voz abafada pelo medo, tinha sido um pedido de socorro tipo manchete de tablóide: um fugitivo invadira sua casa depois de ter matado um professor de Filosofia e sua amante num motel da periferia. As árvores e os outros carros cruzavam pelas janelas com intermitências bruscas. Ela não ligaria para a polícia, tivera vontade sim, mas ele, o fugitivo, poderia torná-la refém e aí só deus para saber como tudo acabaria. O chamado agitara Daniel, trabalhara num caso semelhante, mas a memória não o acudia por inteiro. Se ao menos ela tivesse dito o nome do bandido! Ele também não se preocupara com isso, afinal tinha muito mais coisas em jogo nessa ligação, coisas que ele pensava ter abafado o suficiente no coração. Os sinais vermelhos eram pequenas eternidades, ameaçavam explodir em seu peito a cada nova agonia. Ela talvez nunca suspeitara, ou se algum dia isso ocorrera já teria com certeza esquecido. Ele mesmo, quando o sinal verde abriu com uma luz forte e inesperada, resignara-se à monotonia desse estado murcho e artificial, de pipocas amanhecidas diante do chuvisco da tevê, quando o filme da tarde fria se resolvera enquanto Daniel, mergulhado nas sombras da sala, tinha pesadelos com garotas mimadas que apenas agitavam o sono do seu coração.
No trajeto até a casa de Catarina, recordou a ocasião em que a conhecera. Tinha sido em Nasce um Verão em Junho, de José Camilo. Ela era uma ninfeta apaixonada por um famoso escritor de dramas açucarados. Na época diziam que a personagem dela era inspirada no novo amor de José Camilo, uma pintora e galerista vinte e cinco anos mais jovem. O episódio causou rumores, ampliados mais tarde pelo sucesso da novela e pelos fofoqueiros de plantão, que existem às dúzias na mídia lacrimosa dos cadernos de variedades. O pai, segundo toda essa gente pós-graduada em maledicência, tentou impedir o casamento, ameaçando-a de deserção. E utilizou-se de um ardil: doou pequena parte dos bens a instituições públicas dedicadas à pesquisa do câncer, com a ameaça de doar o restante da fortuna caso a filha mantivesse a palavra. Mas o tiro de gângster saiu pela culatra, porque ela, ignorando as intimidações e os códigos jurídicos, realizou as bodas numa festa sideral, reunindo escritores, artistas e críticos de diversas tribos. Daniel, nos dias que antecederam o acontecimento da semana, do mês, do ano, ficou estendido no tapete de casa feito um faquir duvidando do próprio jejum, levantando-se apenas para conferir a caixa de correspondência, na esperança temível e sempre frustrada de encontrar o convite. 
O pai não cumpriu a ameaça. Na verdade ele fizera uma doação interessada, pois a mulher sofria de doença incurável, a grana serviria para turbinar as pesquisas, além é claro de dar uma boa lustrada na imagem do velhote. Mas José Camilo ainda assim escreveu e publicou o desagravo, num rumoroso e despudorado exemplo em que a arte imita a vida. No título da novela, em mais uma concessão ao romantismo do casal, pôs o mês de celebração das bodas. Era o caso de uma ninfeta apaixonada por um famosos escritor de melosas tramas, bem mais velho do que ela. O pai da cobiçada –– chefe de uma gangue de traficantes –– opunha-se à união. Ela então casou-se num vilarejo do interior, numa festa campestre tão ruidosa que deixou mudos os galos e surdos os cães da casa. O velho, furibundo, seqüestra a filha e jura de morte o escriba. Antes, porém, teve a manha de escrever uma carta em nome do autor, assinada por um perito em falsificações. Nela, o jovem marido dizia ter recebido uma escorchante proposta de resgate. Tirariam dele, num único lance, tudo que conquistara com o suor dos dedos e a devoção dos leitores. A mentira maior vinha a seguir: já sem forças para refazer o patrimônio, com sinais evidentes de que a imaginação perdia forças diante dos bloqueios cada vez mais freqüentes, ele não estava nem um pouco disposto –– ela tinha que entender isso e abençoá-lo em seu coração generoso –– a voltar à estaca zero. Por isso, dispunha-se a devolvê-la para a família em troca do pagamento do resgate. E da dor cruel, sempre renovada, que o remorso lhe causaria. 
A letra tinha sido imitada à perfeição, mas escapara um detalhe ao pai, que redigira o original. O detalhe que era a chave para abrir o esconderijo de qualquer divindade: o escritor, por superstição, jamais utilizava o nome do Altíssimo em seus textos. E Ele estava no início, no meio e especialmente no fim da carta, no blasfemo, herético e sacrílego: “Que Deus a proteja!” Além do que, na intimidade do quarto, depois de desafiarem todos os mensageiros divinos com posições e iniciativas capazes de enrubescer os diabinhos mais sacanas, ele desconfiava da existência de um Arquiteto Universal, e caso ele existisse, seria um sujeito insensível, cego, ignorante, burro ou pusilânime diante de tanta iniquidade no planeta, para ficar só nesta galáxia. Como prova disso, apontava por todos os cantos as crueldades e injustiças de sua obra. E brincava com a idéia de que Deus, o Supremo, devia ter comprado o seu diploma de obras feitas numa dessas fantasmagóricas faculdades que pipocam onde não havia conhecimento profundo de nada. A verdade era que ele, o escritor dos dramas de mel, não tinha força para dizer ao mundo o que de fato era: um ateu. Mas um ateu com medo, claro. De quebra, como prova irrefutável de que a carta não saíra do punho escrevinhador, ela podia escolher ao acaso os erros de ortografia e as canhestras figuras de linguagem que pululavam a cada trecho.  
O cativeiro era um dos iates do pai. Fundeado numa baía carioca, o veleiro estava aos cuidados de um velho marujo porto-riquenho, piloto de antiga rota que ligava o seu país à Colômbia do narcotráfico. Ela  achou um perdido batom da mãe no banheiro, teve que soprar bafos e bafos para acordar o óleo e umedecer a ponta escarlate. Então, em frases telegráficas, com palavras roídas por formigas e percevejos, escreveu um bilhete no guardanapo do almoço e esperou. Na primeira desatenção do vigia, o maior conhecedor do rum caribenho pela própria boca, ela meteu o pedido de socorro na garrafinha plástica e a arremessou ao mar. A garota dizia não acreditar nas supostas palavras do marido, pois este além de ser bom de língua não a trocaria nem por todo ouro do mundo, e atribuiu o plano do seqüestro ao pai. Na parte de trás do papel, com traços que lembravam as figuras rupestres de Piripiri, desenhou as coordenadas do barco. É aí começava a participação de Daniel Danessi, o policial em férias numa das praias do Rio de Janeiro. Ao ver o objeto brilhante aproximando-se da costa, imagina o pedido de socorro de uma formosa donzela, pesca a garrafinha e dá começo à elucidação do caso, libertando ele mesmo a cativa e poupando o escritor.
         Ao volante, lembra-se da tarde em que alcançou o iate a nado, surrou o vigia bêbado, amarrou-o e libertou aquela que passou a ser, dali por diante em sua vida, o modelo de beleza feminina jamais admirado tão de perto por homem algum. Nunca vira, até o momento em que estava com as mãos ao volante –– e não esperava ver até o fim de seus melancólicos dias ––, outra mulher mais bela. Esteve com Catarina apenas aquelas poucas horas em que levou o iate para o píer e a conduziu até o hospital, fazendo a segurança de seu quarto enquanto não chegava o delegado com o reforço. Embora não fosse a partir da razão, sabia - como sabem os que são vítimas de uma iluminação súbita - que vivia e respirava o sagrado. Com a presença de Catarina, rompiam-se os véus da imaginação, e a diafaneidade que por ventura houvesse no mundo estava toda ali, materializada no corpo daquela mulher.
De noite em casa, já vivido o seu momento de glória –– cuja extensão não ocupava mais do que quinze linhas na novela, mas que lhe preencheriam o coração durante todo o seu futuro ––, acompanhou pelos telejornais as notícias do resgate. Impressionou-se ainda mais com a beleza de Catarina, sem acreditar que a tivera em seus braços na tarde daquele mesmo dia. Depois, só se falaram em duas ocasiões: a primeira quando ela telefonou para elogiá-lo por seu destemor ao enfrentar, sem fazer uso de qualquer arma, uma poderosa quadrilha de bandidos traficantes de drogas; a segunda foi quando ele mesmo, convencido de que só voltaria a dormir se a visse outra vez, telefonou para agradecer o presente que ela lhe enviara –– o último livro do marido. Ele a chamou para um jantar a dois, no Duna’s Bar, mas ela gentilmente recusou o convite por estar envolvida numa filmagem sobre o caso para a tevê, dos pés a cabeça, como disse ela num tom que parecia incluir o corpo todo, em especial as regiões mais íntimas e necessitadas dela.
            Ao estacionar o carro, verificou mais uma vez o tambor do revólver. Não era personagem de romance água com açúcar para responder desarmado ao pedido de socorro de uma mulher como Catarina.
            Ao entrar na casa dela, entretanto, teve um abalo.
          “Gervásio Sanchotene!” Só agora a sugestão provocada pela narrativa de Cata-rina vinha-lhe por inteiro à mente. “Eu deixei você preso a última vez em que nos topamos!”, completou Daniel.
            “Foi noutra história”, disse Gervásio.
            “Mas você ainda devia estar cumprindo a pena.”
         Em rápidas palavras, Daniel contou a Catarina a história que ela mesma lhe contara minutos atrás ao telefone. Ele era um dos investigadores em serviço àquela tarde. Ao chegarem no motel, o autor da morte de Viridiana e do professor já tinha escapulido. Procuraram-no sem sucesso pelos quarteirões o resto da tarde. Então, fizeram uma tocaia de múltiplas bocas, em que ele só foi cair na manhã do dia seguinte, ao deixar a casa de uma mulher cujo marido, famoso escritor de novelas policiais, estava em viagem.
            “Então é o mesmo homem”, disse Catarina.
            Gervásio assentiu com a cabeça, nos lábios uma sinuosa ironia.
           “Mas naquela ocasião teve mais um crime”, disse Daniel. “Ele matou a mulher do escritor, mas não sem antes se servir dela… sexualmente!” Catarina fez uma careta de susto que não convenceu Daniel. “No depoimento pra polícia disse que ficaram a noite toda discutindo as novelas do marido. Ele demonstrou profundo conhecimento da psicologia do autor, acabou cativando-a. Ela se entregou. Ele, cegado pela paixão, desesperado por não poder trair o autor das novelas, acabou matando-a por estrangulamento.”
            Catarina, levando-o atrás de si, cruzou por Gervásio e dirigiu-se para a sala. Na maneira como ela caminhava havia um sutil erotismo. Isso o fez esquecer a história por um instante.
            “Quer dizer então que você salvou minha vida”, disse Catarina.
            “Mas também empatou nosso prazer”, disse Gervásio com picardia.
            Catarina e Gervásio retomaram seus acentos. Daniel sentou-se no sofá; a histó-ria da captura vivia de novo em sua mente.
            “Não sei se tenho poder pra tanto”, disse ele contendo o ciúme causado pelas palavras de Gervásio. “Não se pode alterar o vivido, muito menos o que já está escrito e publicado. Podemos apenas mudar nossa compreensão dos fatos.”
            “O que não é pouco”, disse Gervásio. “ Mas não se preocupe à toa”, continuou num tom provocativamente cínico, “a novela já está concluída, agora vivemos noutra, talvez uma variação em tom de paródia. A sua chegada é a confirmação de que a história não se repete, nem como farsa.”
            Daniel nada podia fazer, os crimes de Gervásio eram parte de outro mundo. Lá já recebera o seu julgamento e cumpria pena –– pelo menos era o convencionado. Agora estavam em pé de igualdade. E além do mais fora chamado apenas como amigo.
            Gervásio o surpreendeu:
“Aposto que você não sabe o seu verdadeiro papel aqui.”
Aqui era outra história, independente da conhecida pelo público. Como sempre, estava à mercê de um desígnio superior à sua vontade, e isso o mortificava. Não sabia o intuito desse poder condutor, pois tomava conhecimento de seu sentido imediato somente ao cabo de cada uma das ações. Nem emitia juízos sobre os comandos recebidos. E cumpria cada um deles sem fazer objeções, sem jamais alterara uma vírgula de lugar, embora muitas vezes estivesse em profundo desacordo com eles.
Gervásio seguiu com a provocação:
“Assim é em todas as histórias, nunca temos o governo completo de nossos próprios atos.”
Gervásio falava o que ele já sabia: eram outra vez personagens de novela, controlados do exterior por um artífice. Seus pensamentos mais voluntários, seus desejos mais imediatos, suas sensações mais fortes eram criados sem a participação de sua personalidade. Nunca podiam se antecipar aos fatos para tomar a devida precaução.
Gervásio fustigou-o mais uma vez:
“Reféns! Títeres sem memória! E você é mais um deles!”
O seu próprio passado, em meio à ação, não o ajudava. Recordava-se de detalhes dos papéis anteriores –– como no caso de Nasce um Verão em Junho ––, mas isso era inútil no presente.
Daniel tentou inverter o jogo, atacando o outro.
            “Pelos meus cálculos você ainda devia estar preso.”
            Gervásio não hesitou:
            “Fugi.”
            “Como?!”, disse Catarina. “Você não era refém apenas da Justiça, mas de uma lei inviolável! Você devia... Você ainda deve estar lá!”
            “Ainda estou lá, de acordo com a teoria da aparência”, sorriu Gervásio como se explicasse o caso a duas crianças. “Qualquer leitor me encontrará preso ao final de O Vento Negro da Primavera. Apesar de ter sofrido uma pena de anos de reclusão, ela na verdade não se esgota jamais, pois o livro se encerra antes de eu cumpri-la. Isso, além de injusto, não está previsto na lei. Eu ficaria preso por toda a eternidade.”
            Daniel teve uma chance de revide:
         “Até porque você não é feito da matéria com que se forjam os deuses, não é mesmo?”
            Gervásio ignorou a provocação.
“Então resolvi fugir, a única maneira de assegurar minha liberdade. Mas isso não altera em nada a forma e o conteúdo da novela. Para todos os efeitos ainda estou encarcerado.”
            “Mas a sua fuga antes do cumprimento da pena”, disse Daniel,  “viola o sentido da sentença. Se para o mundo exterior você permanece trancafiado, para o nosso você é um foragido.”
            Gervásio ficou cheio de si:
          “Não foi noutra condição que entrei nesta história. Apenas sigo o propósito do meu criador. Sou como vocês, quando têm suas vidas governadas por forças mais poderosas do que a vontade imediata. Estamos aqui pra realização de novos papéis, mas ainda fixos aos anteriores, como se fossem estes que nos dessem alma. –– Gervásio parecia saborear as próprias palavras como se fossem morangos com chantili. Depois de uma pausa irritante e prolongada, arrematou: –– E há muita verdade nesse método!”
            “Por que você fugiu?”, quis saber Catarina.
            “A fuga é a vocação de todo preso.”
            Daniel interpelou-o com impaciência.
            “Afinal, de quem você está se escondendo? Dos policiais? dos carcereiros? de você mesmo?”
     “Para mim, a condição de fugitivo independe de quem sejam os meus perseguidores.”
          “E por que você entrou nesta casa? Por que não passou reto, como fazem os demais pedestres do bairro?”
            “Porque Catarina foi a única que me abriu a porta.”
            Daniel o fustigou com uma ironia ácida:
            “Será que você não veio cometer mais um crime?”
            Pela primeira vez Gervásio mostrou-se irritado.
          “Ora, o que aconteceu está feito e acabado, xará. As coisas não se repetem! Não se muda o curso de uma história já públicada, não é assim?”
         “Mas você ainda pode estar cumprindo o papel pelo qual recebeu a condena-ção”, disse Catarina.
           “E nesse caso seria uma continuação de O Vento Negro da Primavera”, asso-mou Daniel.
            “Se for assim”, disse Gervásio com ar de mofa, “assim será.”
            “É muita petulância!”, irritou-se Daniel.
            Catarina Romanovich tentou conciliar os ânimos.
            “Bem, pelo menos estou viva. Você se sente um assassino?”
            Gervásio sorriu:
           “Não sei se existe tal categoria de gente. Mas se como eu me sinto é como deve se sentir um deles... Bem, sou tão assassino quanto qualquer de vocês é uma rã macaqueando-se num baile de máscaras!”
            “Então os juízes erraram?”, disse Catarina.
            “Não estou aqui para julgar juízes. Aliás, quem pode julgá-los? Acima deles só há Deus e as leis” disse com ironia. “E, até onde eu saiba, Ele jamais se intrometeu nos assuntos humanos.”
            A conversa tomava outro rumo, e isso aliviou a tensão. Daniel, minutos depois, perguntou num tom mais amistoso:
         “No seu caso, aplicaram corretamente a lei? Você não acha que às vezes os juízes se colocam acima dos códigos?”
            Gervásio sorriu com um vivo deboche.
           “Coitados! São tão miseráveis quanto o mais reles dos condenados que mandam quarar na cadeia. São vítimas das mesmas leis que nos governam. A diferença é que o Estado os mantém aprisionados num lugar confortável, com um salário que lhes permite gozar as benesses do sistema. Mas, quando atuam, não são eles que julgam, é uma certa consciência coletiva, seja lá o que isso quer dizer. É ela que nos julga através deles, compreendem? Juiz nenhum está acima da lei. Não podem sair por aí espalhando justiça e garantindo direitos como quem distribui esmolas aos miseráveis. Não são potentados acima do bem e do mal, embora alguns queiram nos convencer do contrário com sentenças estapafúrdias. Sua função é manter a lei, e só num segundo plano entra o interesse do indivíduo. Por isso não me importa o exame do meu caso, pois o que julgaram não foi a minha pessoa, mas a minha conduta. Pra mim, o único juiz é a consciência individual. Somente ela pode julgar com toda clareza os fatos e suas motivações. Mas quem pode estar nela além do próprio sujeito?”
            Catarina Romanovich interrompeu-o com aspereza.
            “Engano pensar que cada um pode ser juiz dos próprios crimes.”
            “E mais ainda imaginar que a consciência sabe tudo.”
“Seríamos todos absolvidos, e o mundo em pouco tempo estaria transformado numa gaiola de loucos e degenerados. Seria o fim da civilização, teríamos de voltar para as árvores e as cavernas, ou habitar os escombros e o que restasse das pontes torpedeadas.”
            Gervásio sorriu com uma ironia renovada:
         “Não seria diferente do que já é. O cenário apontado por você é meticulosa-mente construído a cada nova guerra. Essa justiça tem servido apenas para aumentar o fosso entre os ratos dos escombros e os turistas dos paraísos urbanos.”
          “Fácil falar quando se é foragido da Justiça”, disse Daniel, provocativo.
            “Meu amiguinho, no dia em que você sentir na carne o fio cego do Estado, sem ter a quem recorrer, entenderá minhas palavras.”
            Catarina, dizendo que entravam num mato sem cachorro, e dando a entender que o passo seguinte seriam considerações de ordem política e econômica, filtradas por tal e qual ideologia, levantou-se:
            “Vou buscar o que comer. Se conversarem, por favor, façam num volume que eu possa acompanhar.”
            Ela saiu da sala carregando atrás de si os olhares silenciosos.
            Desde a atuação em O Vento Negro da Primavera, de João Matheus, ele não reencontrara Gervásio. Embora prisioneiros de papéis, fora da trama gozavam de alguma liberdade, como ocorrera com ele e Catarina depois de sua participação em Nasce Um Verão Em Junho. Essa pequena bolha os mantinha vivos entre uma novela e outra. Quando chamados para personificar um tema, reconheciam desde logo a mão do criador –– ao menos o da novela ––, a força imponderável a movê-los de uma ação à outra. Muitos não tinham a sorte de tomar parte em mais de uma história; eram vidas minúsculas, confinadas ao único papel que lhes cabia interpretar ao longo da intriga. O papel das traças! Alguns tinham a má sorte de morrer em meio aos episódios, rematando um tortuoso curso de fantoches conscientes, portadores de sensações, idéias e sentimentos alheios que tomavam como seus. Todos na verdade eram entidades vivas, ou mortos-vivos que renasciam a cada dia, a cada novo olhar. Mortos que carregavam os vivos, ou vivos que suportavam seus mortos, ou a parte viva de um arrastando a parte morta do outro. Isso era bem confuso, mesmo.
            Ao fim da reflexão, Daniel perguntou num desespero contido:
            “Eu gostaria de saber o que estamos fazendo nesta história.”
            Gervásio sorriu de seu modo peculiar.
            “Nunca saberemos o sentido de tudo, até que se conclua.”
            “Se é que tem fim”, gritou Catarina da cozinha. Misturada ao barulho da louça, chegava a sua voz, mais afiada que o tinir dos metais: “Mesmo quando olhamos nossa história pessoal, é impossível compreender o seu significado.”
            Gervásio retomou o tema do fim da tarde, numa cansada ironia.
“É apenas uma das séries possíveis de acontecimentos.”
“Mas qual o seu sentido mais profundo?”, insistiu Catarina.
            Daniel teve um momento de indignação:
            “O que estamos fazendo nesta porra de história?”, gritou.
Queria ser ouvido por Catarina, mas também aliviar-se do desconforto de estar sempre no lugar errado, deblaterar contra o mundo, revoltar-se contra a condição humana, insultar o Estado e os poderosos, xingar o autor. Numa palavra: rebelar-se. Por que outra vez em cena? A sensação de não poder seguir o próprio desejo, nem arranjar as coisas de acordo com seu temperamento, oprimia-o. O que Gervásio fazia entre Catarina e ele, na única oportunidade em que voltava a encontrá-la? Mais uma vez sentia-se conduzido de fora.
Levantou-se. Um novo grito, agora para os móveis e quadros. Para as janelas e a porta. Para o que de alguma forma repercutisse a sua voz:
“Quem?!… Ou o que está por trás de tudo?!”
             Gervásio veio em seu socorro.
            “Com certeza, quem nos trouxe ao mundo a primeira vez.”
            Isso era apenas uma possibilidade, disse Daniel. Eram conhecidos os casos de personagens que, embora trocassem de papel ao gosto de seus manipuladores –– ele detestava essa palavra ––, escapavam da antiga tutela para atuarem sob o comando de outras mãos. Vítimas de novos truques! Isso dava a suas vidas um gosto de aventura, mas uma aventura que gerava angústia. Afinal, qual a sua verdadeira identidade? a que raios de auto-imagem deviam atender toda vez que se encontravam numa nova situação? Ele mesmo já não sabia mais se era o policial heróico de um romance lacrimoso, se o amigo em dúvidas diante da mulher de um famoso escritor em viagem, ou se mais uma vez um investigador a serviço da lei. Devia atender ao seu temperamento introspectivo e sonhador de Nasce um Verão, ou seguir o espírito analítico e indutor do papel de policial auxiliar na outra novela? Era humilhante a simples possibilidade de ter suas aspirações mais uma vez contrariadas por um terceiro, cujo nome corria o risco de nem mesmo conhecer, caso não chegasse ao final com vida. Pior ainda se fosse um pseudônimo! Isso sem considerar a desoladora possibilidade de estarem numa novela inédita, escrita às pressas a um concurso caça-níquel, sem as apaziguadoras revisões.
            Quando estava mais calmo, Gervásio provocou-o de novo:
            “Você sempre desempenhou papéis auxiliares?”
           A pergunta abriu uma enorme ferida em sua alma. Nunca pensara nesses termos. Olhou a expressão do outro em busca do escárnio, tão comum em suas atitudes. Porém, não conseguiu ver além de uma mal dissimulada intenção de espezinhá-lo. Se era o seu desejo, atingira o alvo em cheio, tinha que reconhecer. O seu peito doía com a nova revelação. Auxiliar! Sua vida era mesmo um somatório de tarefas modestas, inúteis, mesquinhas, sempre em torno de um feixe de desejos que não formavam um centro. Qual era a direção de seus atos? Com amargura, reconhecia que sua vida não tinha um objetivo, suas ações tomavam o rumo da inspiração momentânea, e todas somadas não eram menos que uma rosa-dos-ventos, cuja agulha de navegação era na verdade uma biruta andando em círculos. A sua rosa-dos-rumos, com efeito, constituía-se de trezentos e sessenta graus, um para cada ano do dia, mas com o detalhe fundamental de que em seus pontos cardeais não havia Norte, toda navegação tendo de ser feita ao sabor do improviso, da hora, do minuto... Com tanta imprecisão, não tinha como não se sentir um dispersivo, um auxiliar... Gervásio, talvez sem saber, martelara em cheio o pino que segurava essa agulha gira-gira, perdida em meio aos círculos e ciclos.
            Dominou-se o que pôde para não se trair.
            “Este é o meu terceiro papel.”
          Catarina Romanovich entrava com uma bandeja guarnecida de vinho, torra-dinhas e pastas de queixo fundido:
            “Que eu lembre é o meu segundo.”
            “Então estamos no mesmo plano”, disse Gervásio ao levantar-se para ajudá-la com o vinho. “É também o meu segundo papel.”
            Daniel ficou mortificado. Se a tirada dos planos o atingira na parte mais sensível –– que respondia pelo nome de Catarina Romanovich ––, a iniciativa de Gervásio para servir o vinho –– como se fizesse as honras da casa –– era uma agulha de bordadeira no coração.
            Achou que devia reagir.
            “A sua participação em O Vento Negro da Primavera”, disse apanhando o cálice
e olhando fundo nos olhos pretos e baços de Gervásio, “pode ser o fio da meada. Se o pu-
xarmos, talvez encontremos a resposta para a nossa presença aqui neste momento.”






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