terça-feira, 30 de julho de 2013

Mínima do dia - 4

Sancho feliz ao rever sua cidade natal.
(Ilustração de Gustave Doré)




Assim como todo Quixote
tem seu dia de Pança,
todo Sancho 

tem seu dia de Dom.











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segunda-feira, 29 de julho de 2013

A diversidade na união

publicado originalmente no
Observatório da Imprensa 23/11/2010 

Por Elenita Malta Pereira e Marcelo Degrazia






      Em 12 de novembro, a Folha de S.Paulo publicou, em sua seção "Tendências/Debates", artigo da professora de direito Janaína Conceição Paschoal, intitulado "Em defesa de Mayara", a estudante de Direito que recomendou a quem quisesse fazer um favor a São Paulo afogar um nordestino por dia. A respeito da afirmação extremamente preconceituosa – como se fosse possível alguma defesa – a professora argumenta que a culpa não foi de Mayara, e sim de Lula, que promoveria uma política separatista no Brasil. Declarações do presidente, ao dividir o país em "pobres" e "ricos", motivariam manifestações como as da estudante paulista.
      O artigo de Janaína afirma também que Serra teria sido rejeitado por ser paulista, o que, além de não se constituir em argumento comprovável, falha na medida em que o tucano foi recusado pela maioria dos eleitores, e não apenas por nordestinos. Considerando apenas a economia e os índices de desenvolvimento humano, o Nordeste, historicamente, foi visto como a região mais atrasada do país, vitimada pela seca; isso é verdade, mas sobretudo por oligarquias de "coronéis" que monopolizavam terras, capitais, mídias, votos, poder. Esse modelo de (sub)desenvolvimento gerou concentração de riqueza, de um lado, e profundas mazelas sociais de outro. Os recursos federais aí investidos em políticas assistencialistas por governos passados foram, em boa parte, sistematicamente desviados por esquemas de corrupção que favoreciam "donos de poder" locais e novas forças políticas eventualmente emergidas. A região evoluiu bastante, não resta dúvida, mas ainda apresenta grandes carências sociais e distorções econômicas. Num contexto como esse, qualquer governo que oferecesse benefícios concretos e de maneira direta acabaria recolhendo duras críticas por parte das elites mais atrasadas, juntamente com os votos do povo desassistido.
      Se houve rejeição, foi ao que o candidato tucano representava enquanto ameaça a esse aspecto da distribuição da renda nacional, e não ao fato de ser paulista. Houve, sim, uma nítida escolha: continuar o projeto iniciado em 2003. As urnas, quando ouvidas, falaram na linguagem dos eleitores a mesma linguagem sem sotaques das palavras-votos, de Norte a Sul do Brasil.


      A política separatista

      A professora, num trecho de seu artigo na Folha, se refere ao ataque de Mayara contra os nordestinos como sendo o resultado de uma suposta política separatista incentivada por Brasília. Somos assim tão cegos, a ponto de não vermos que um dos objetivos do atual governo era o de desmembrar o Brasil? Lula conseguiria somente com a força de sua política social e com o metralhar dos votos, o que Sabinadas, Cabanagens e Farroupilhas apenas sonharam com a força de seus fuzis? Não foi o governo Lula quem criou os distanciamentos sugeridos pela professora. Foram as próprias realidades brasileiras, estabelecidas por processos históricos de exclusão social, que geraram as situações apontadas pelo presidente ao longo de seu governo.


Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral,
assimilação interativa do/com outro

      Contra as desigualdades, entre acertos e erros, foram continuadas, aprofundadas e desenvolvidas diversas políticas sociais, na tentativa de, se não eliminá-las, ao menos reduzi-las. Tais políticas, muitas vezes taxadas de assistencialistas, representam o mínimo necessário para aplacar as enormes carências das populações e as grandes diferenças econômicas entre as regiões do país. Se compararmos tais políticas com os programas sociais de muitas nações europeias, verificaremos nosso atraso em termos de amparo aos menos favorecidos. Já a própria Constituição de 1988, em seus princípios fundamentais, reconheceu as profundas diferenças muito antes de serem apontadas pelo Presidente, tanto que anota como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no Art. 3º, inciso III: "Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (grifo nosso). O assistencialismo apoia-se, entre outros conceitos, na noção de que não dá para esperar o bolo crescer e só então reparti-lo, como queria Delfim Neto no regime civil-militar.


      O país da diversidade

      Quanto à unidade brasileira, a professora afirma que o Brasil sempre foi "um exemplo de união", a começar pela língua, falada por todos, apesar das dimensões continentais do país. No entanto, muitos de nós não conseguem ver que a grande contribuição do Brasil para a humanidade é justamente o seu multiculturalismo, expresso na sua diversidade étnica, religiosa, linguística, folclórica, artística, que expressam, por sua vez, matrizes culturais muito diversas. É impossível reduzir a nação às suas características regionais, ainda que reunidos seus aspectos mais representativos. Por isso, toda tentativa de agrupar os elementos afirmativos dessa impossível imagem nacional sempre têm falhado, quando não repetem estereótipos vazios e limitadores que dizem mais de uns do que de outros.


Operários (1933), de Tarsila do Amaral, flagrante de
diversidade na união


      Qualquer tentativa de fixar essa riqueza de matizes numa imagem será sempre tarefa vã e empobrecedora. Não é derrotismo, é aceitação do outro, do vário, do múltiplo. Porque o que essas definições têm em comum, tirando o aspecto reducionista, é a produção de símbolos "à nossa imagem e semelhança", mas de apenas alguns e em certos locais de privilégios. Mestiços, somos vários e multifários, irredutíveis às unidades fundamentais e instrumentais da nacionalidade, como a língua, a moeda, o território, a ordem jurídica, o governo, os símbolos nacionais. Nesse contexto (de diversidade na união), as nossas agudas diferenças, manifestadas nas violências urbana e rural, são provocadas, sobretudo, pelas desigualdades econômicas, políticas e sociais.

      E quanto à Mayara, não vimos em que a professora, que também é advogada, apoiaria a eventual defesa (mencionada no título do artigo) de sua possível cliente porque não há nenhum nexo causal entre a infeliz manifestação da estudante e uma suposta política separatista do governo Lula – argumentos aqui contestados – para justificar o seu ataque raivoso contra nós, 190 milhões de nordestinos de todos os quadrantes. Ao tentar defender o indefensável, a professora apela para a lógica da inversão e acaba culpando as próprias vítimas – no caso, a população nordestina – pelos problemas do país. Nossa conclusão é que Janaína Conceição Paschoal aproveitou o caso Mayara para, em seu artigo na Folha, além de requentar o indigesto Prato Frio (PF) da não memorável campanha eleitoral, passar o seu lamento pela derrota do candidato tucano.


Elenita Malta Pereira é Historiadora
Marcelo Degrazia é escritor
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sexta-feira, 26 de julho de 2013

O intelectual na sociedade do espetáculo:

      A atitude política do intelectual contemporâneo diante da sociedade do espetáculo:
      - Penso, logo desisto!
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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Mínima do dia - 3


"Ele mesmo ordenou e tudo foi criado"
"O Jardim das Delícias Terrenas", (+ ou - 1500), de Hieronymus Bosch (1450-1516)
A distância entre a loucura e a razão 
é de apenas um grão.


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O Olho

fragmento do romance 
O Deserto das Ilusões




     

      Ao cruzar o galpão de uma fazenda onde o pai contador, em visita a um dos grandes exploradores da re-gião, foi colher os números do arroz e da pecuária, Isaías viu-se diante de uma cabeça de ovelha num varal. Pendurada no gancho, ela o olhava fixamente como se indagasse, ou mais, como se o acusasse por sua atual condição. Parecia haver nesse olhar já embaciado uma espécie de dolorosa resignação, como se ele, o animal, lamentasse tarde demais a confiança depositada em seus cuidadores. Enxameada de moscas, ainda gotejava demorados e grossos pingos de sangue. No chão se formara uma pequena poça, onde em seguida chegou um cão ovelheiro para beber.
      Isaías desviou o olhar, mas acabou dirigindo-o para o pequeno monte de lãs próximo à saída do galpão. O comum era o pelego da ovelha sacrificada ficar ao sol, coreando, mas por um motivo qualquer ela tinha sido tosquiada antes. O pai, o avô, um peão, às vezes lhe contavam histórias ou comentavam algum fato estranho ao andar por perto. Agora, quando procurava fugir ao olhar fixo do animal, as narrativas se enredavam na memória. A lã, tramada nos teares, recebia tintas e depois era transformada em blusões, ponchos e cobertores pesados. Num tempo lá atrás, em outros campos ou vales, pequenos rolos de fios como esses viravam pavios de antigas lamparinas, e embebidos na gordura do próprio animal formavam velas para iluminar a noite das famílias, talvez cavernas profundas onde pudessem também se esconder os monstros. Ah, o assadinho de cordeiro... Nunca podia faltar em dia de festa, e durante a semana era preparado na forma de costeletas com arroz, ou cozinhado com massa.
      Olhou mais uma vez a cabeça. O que tinha diante de si era apenas uma etapa desse processo. Ele, assim como os outros, passado o primeiro susto da infância diante do sacrifício de uma rês, também já se acostumara a ver essas partes como produtos. Se alguém se mostrasse horrorizado com o desespero do animal na hora bárbara e solene, não faltava quem dissesse: isso é a vida, uns morrem para outros viverem, é a lei mais certa da natureza.
      Na primeira vez, e agora, quando olhava fixamente o olho já sem brilho do animal, pensou que isso não estava certo. Tinha aí no mínimo um grande equívoco, não era correto toda essa criação para o abatimento em massa, sem outro critério que não fosse a permanência da espécie. Deus, e o homem em seu lugar, deviam buscar um novo caminho para a sobrevivência. O que queriam provar? Qual a necessidade de tamanho sacrifício? O homem, para encher o bucho e os bolsos; e para abrigar-se do inverno não precisaria matar. Mas Deus, qual a sua necessidade, o que precisava provar com o inesgotável morticínio em sua perene marcha, que não pudesse ser melhor demonstrado pelo amor, a generosidade, o perdão? Que eram capazes de criar, isso já estava suficientemente comprovado, em especial através da beleza e de todo êxtase por ela provocado. Então qual a precisão do extermínio? Não conseguiam se colocar no lugar do outro, seria só isso? Era assim tão contundente o fio da própria faca, para não a experimentarem na própria carne? Não veriam isso?
      O cão ovelheiro, sorvida a poça de sangue até o fim, deixou o galpão num passo indiferente e rumou para os campos.
      No outro varal - as costelas arfando em silêncio - repousava o corpo esquartejado. Num impulso, Isaías pediu ao capataz a faca emprestada, era para extrair um dos olhos da cabeça. Não tinha muito claro o que procurava, quando começou a fustigar por atrás do olho embaciado. Depois de alguma luta, cuidando sempre para não machucar o órgão do animal - não sabia que ele era fixado tão firmemente ao fundo da cova -, afinal o extraiu. Em seguida, amparava na palma da mão uma rara bolita, como nunca tivera, como nunca imaginara outra igual na infância.
      Ainda seguindo o mesmo impulso, cortou o olho na transversal. Escorreu em suas mãos um líquido puríssimo jamais visto nem tocado por ele, um fluido sequer intuído, mais brilhante do que a vaselina e mais fresco e transparente do que a água mais cristalina. Não podia imaginar que houvesse no mundo tamanha pureza! Era uma não-matéria, a transparência que deixava ver e até mesmo aclarava ainda mais o outro lado, sua palma da mão mais viva e aberta. Nela, vertia um coágulo de tempo - a concentração da metafísica!, pensava só agora ao relembrar -, todo o fruir da existência animal em sua pele, a escorrer por seus dedos. Depois da sutil massa incolor, que tinha um cheiro de peixe que ficou impregnado nas mãos durante dias, vinha um círculo oval acinzentado, claro e consistente: a pupila, colada contra a córnea no centro da íris...
      Teve novo impulso. Juntou o seu ao olho do animal, e viu que o outro também captava o mundo de cabeça para baixo, um mundo invertido, que só mesmo a severa lei da retina corrigia. Ao apertar tal globo, o pequeno globo oblongo dentro do líquido vítreo, o invólucro se partiu, e do seu interior irrompeu uma nova massa brilhante, agora mais espessa, com minúsculos pontos coloridos, de tal modo que ele tinha na palma da mão, em miniatura, uma espécie de arco-íris aos fragmentos. Seria o filtro das cores? Era um gel quase translúcido, semelhante às pomadas homeopáticas, que se desfazia com a pressão renovada dos dedos. Até que perdeu por completo a forma original e se transformou numa massa pastosa - todo o mistério do olhar animal agora desfeito em suas mãos.
      Olhou outra vez a cabeça da ovelha. Que prodígio! Como podia essa matéria ter sido criada e ficado esse tempo todo escondida do mundo? Quantos como ele, fosse pelo trabalho, pela educação ou até mesmo pelo acaso, como lhe parecia o seu próprio instante, tinham alcançado o fundo do olho do animal, essa cova, essa caverna milenar onde Deus parecia teimar em se esconder, lançando apenas sombras sobre tudo em volta?...
      Estava nisso, quando ouviu a voz do capataz às suas costas, num tom divertido e aflautado:
      - Isso aí assado na brasa... Hum!... É uma iguaria!
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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Mínima do dia - 2

Não deixe a vida esfriar.
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A Pele Que (Não) Habito

Gênero, identidade e transgressão


Num mundo em que a evolução técnica já é capaz de trocar até o rosto das pessoas, sem no entanto lhes dar uma nova identidade, como fica o (auto) reconhecimento do sujeito?
Essa inquietante questão também está colocada no mais recente Almodóvar, “A pele que habito”. Não tem a mesma vibração de cores nem as tiradas espirituosas de filmes anteriores do autor. Ao contrário, dessa vez o cineasta espanhol nos mostra interiores e roupas de cores sóbrias, e, quando a luz reluz, tem a frieza asséptica de uma sala de cirurgia.
Tudo a ver com o assunto: cirurgião plástico, Robert pesquisa em busca de nova pele para a mulher, que sobreviveu a acidente de automóvel quando fugia dele... Entre a vida e a morte, o corpo transfigurado pelo fogo, ela fica aos cuidados do médico-marido. Mas um incidente terrível, provocado de modo involuntário pela filha do casal, elimina qualquer possibilidade de êxito para a busca do marido. Essa face do trágico tem origem na candura. Quem se ergue e vai atrás dela, não suporta sua auto-imagem refletida. Diante do grotesco, a queda. Anos mais tarde, a menina será vítima de um novo golpe brutal, dando ao médico a inesperada oportunidade de resgatar a mulher perdida.
Entre avanços e recuos no tempo, o filme apresenta uma galeria de personagens transgressoras. Insatisfeitos com a própria vida, cada qual transgride à sua maneira. Robert trabalha para uma gangue que fatura com a troca de rosto de criminosos, mas o seu lance mais ousado, e motivo condutor do filme, foi praticar com as próprias mãos um ato de vingança, ao sequestrar o causador de grande mal à filha. No caminho da vendeta, em algum momento, ele vislumbra a possibilidade de retomar sua procura original.
À semelhança de Montresor em “O Barril de Amontillado”, de Poe, o médico manterá sua vítima a ferros em caverna particular, enquanto destila o insano plano de busca. Aqui talvez há referência “invertida” ao mito de Orfeu, que foi ao mundo dos mortos resgatar sua fiel Eurídice (esta também se acidentou, com a picada da cobra, mas quando fugia ao seu perseguidor Aristeu). Em sua busca por uma pele nova e “resistente” para a mulher, Robert não hesita em violar o código que proibia a transgenia aplicada a seres humanos. É advertido por um membro da comunidade científica, mas vai adiante.

Já Vincent precisa, a cada semana, dar uma escapada para praticar seus atos transgressivos, chamados de “taras” a  certo trecho do filme. Lembra o personagem sem nome de “Passeio Noturno I”, de Rubem Fonseca, que para se desafogar dos dias terríveis na companhia, saía à noite para caçar suas vítimas, independente se fossem homens ou mulheres. Zeca, criado numa favela da Bahia (Salvador), a exemplo de Fortunato no conto de Poe, aparecerá na vida de Robert em meio ao Carnaval (período de suspensão de certas normas de conduta), ele também com um passado de crimes. Cada uma infeliz ao seu modo, as três personagens têm em comum o desconhecimento da própria origem.
E por aqui entra um assunto caro a Almodóvar: a figura masculina. A trinca é filha de pais ausentes, que não participaram de sua educação afetiva. Como em outros de seus filmes, aflora a imagem do macho autoritário e fornicador, o animal procriador que não cria, não cuida, não educa. E que no extremo de seu lado monstro, será capaz de barbaridades invasivas contra o outro, em atos repulsivos como o estupro. No egoísmo do mundo para mim, Robert e os outros não reconhecem a vontade de quem está diante deles, a não ser como espelho de suas próprias vontades. Parecem dizer que o outro não tem rosto, que a pele que habitam é e será apenas a fornecida pelo eu mesmo. Eles mesmos retratos de uma sociedade sem rosto.



Almodóvar evita a simplicidade dos opostos, suas figuras femininas importantes também não recebem olhares condescendentes.  A certa altura, Marília (Maria?) afirma que a loucura dos filhos foi gerada no seu próprio útero. Talvez  aí, em se tratando de transgenia, mudança de corpo, de pele e de sexo, há um traço de determinismo no filme, ao eliminar as forças do ambiente como também causadora de nossos males. A responsabilização do indivíduo, no caso aqui a figura feminina, eximiria a vida social de responsabilidade por nossos graves desvios. Porém, o mesmo poderia ser dito por uma personagem masculina, afinal a loucura instalada no útero de Marília teve participação do pai. Se pensarmos numa Espanha católica fervorosa, a interpretação pediria muito mais espaço.
Mas tal hipótese entra em conflito dentro do próprio filme. Pois há nele outra vítima, considerando todos os transgressores como também vítimas de suas origens e meios. Essa vítima é a filha do casal. Nossa visão até aqui parece confirmada no nome dado a essa personagem. Além do trauma pela perda violenta da mãe, que a colocará sob acompanhamento médico o restante da vida, ela sofrerá a violência que desencadeará a vingança e a busca do pai por sua Nova Eurídice.


O tecido frágil da menina, sua condição emocional pós-trauma, simbolicamente a pele que habita, é rompido por um ato unilateral de vontade. Diante dessa violência, logo associada à figura do pai, ela perde a confiança numa vida estável e justa, acelerando o seu desligamento do mundo. Momentos antes de ser mais uma vez vitimada, joga longe os sapatos de tacos altos (renúncia ao seu caminho) e logo o casaco rosa (a pele social), dando vivos sinais de que ela mesma não suportava mais a prisão da própria vida, sustentada de maneira artificial por químicas anestésicas.
O seu nome é Norma.
Nesse Frankenstein de Almodóvar, em que o criador sucumbe à sua própria criatura, em que aquele que traz a cura (o médico) habita o mesmo corpo daquele que transgride a norma (o monstro), parece não haver salvação para ninguém. É quem sabe o filme mais niilista do diretor, até aqui. Robert, ao se apaixonar por sua vítima, inverte a síndrome de Estocolmo (nome originado do assalto com sequestro próximo à praça Norrmalmstorg, no centro daquela cidade), mas nem isso o salva. 


A Bela, para fugir de seu cativeiro, não renuncia ao cometimento de novos crimes. O contato com a arte, a ioga, a leitura de Alice Munro, nada elimina o germe da maldade em seu tempo de prisioneira. Felicidade demais, no caso da agora bela vítima, é aguardar pelo tempo da vingança, tempo em que ela mesma será a Fera. Para isso, basta um erro de seu algoz.
O erro de Robert, como dos demais (como o de nós outros quando incorremos na mesma cegueira) foi não reconhecer nem a si nem ao outro. Não faz investigações para saber os motivos da traição da mulher, não supõe que ele mesmo é parte da resposta, talvez a maior, a porção mais significativa da causa de sua própria desgraça. Desconhece a si mesmo, pois não sabe que não é filho dos Legrand (os Grandes?), e vítima de sua própria cegueira, Robert-Édipo busca estabelecer unilateralmente a identidade do outro, sem perceber que sua própria identidade, seu conhecimento de si, depende sobretudo do outro, e qualquer imagem que resulte disso só pode ser tecida na e com a relação dos sujeitos, nunca no eu sozinho, na loucura precária de fazer do outro minha imagem e semelhança.

Uma das vítimas dessa cegueira (de atribuir a identidade via mão única) é o transgressor de Norma. Ele não tem opção, seu novo estado é estabelecido de fora, sem o seu consentimento. Vítima da forma mais cruel de determinismo, seu castigo será habitar um corpo estranhado, não mais o seu antigo corpo. Destino fatal, sem escolha, sem volta. Numa condição semelhante à de sua vítima, sua marca de nascença será sofrer o mesmo mal cometido contra Norma.
Aí está o grande desafio lançado por Almodóvar. Em princípio, em a pele que habito, não muda o sujeito, apenas o seu lugar. Parente do/a Diadorim de Guimarães Rosa e de o/a Orlando, de Virgínia Woolf, a personagem em questão, depois da mudança radical de estado, ainda permanece ligada ao seu conteúdo anímico, ao seu todo espiritual e afetivo. A sua memória, até essa nova condição, é de determinado gênero, ligada a determinado sexo. Porém, a nova condição (o novo corpo, a pele nova) pede uma nova mente.
Fruto do que Ortega y Gasset, filósofo conterrâneo de Almodóvar, chamaria de “ele e a sua circunstância”, esse homem, num único golpe, teve mudados os dois termos da expressão. Nem homem nem mulher, nem macho nem fêmea, o novo fruto, ou a Eurídice invertida, é um híbrido infértil. Violentado, jogado num caminho e numa pele não escolhida por ele, mas determinada por outro (de fora, já dissemos) com a sua participação (afinal seu estado atual é também motivado por suas escolhas passadas), ele agora é de outro gênero. Misto homem-mulher, gênero estéril, é incapaz de descendência. Nesses termos, como fazer para se reconhecer e ser reconhecido? Como alcançar a fecundidade?
A personagem, com a mudança de sua condição, deverá criar novas relações com o mundo para se desenvolver. Isso é tão inevitável, como dependerá do sucesso dessa busca sua sobrevivência, para que não entre em colapso como a antiga norma. Por escolha de outro, não será mulher completa nem homem completo, de acordo com os padrões anteriores ao seu estado atual, mas que ainda presidem o seu novo nascimento. O desejo de plenitude permanece vivo.


Mas o seu problema tem o tamanho do mundo, afinal este não mudou. A sua reeducação deverá se dar no mesmo ambiente, lato sensu, em que cometia e ainda comete suas transgressões. Portanto, sem ilusão. Já que não pode mudar o mundo, e sua condição foi alterada sem opção sua, deverá buscar nos outros (e em possíveis semelhantes) o seu novo modo de ser, para que a nova pele que habita, no corpo estranhado, não seja novo cativeiro. O seu castigo, que é ter de viver sob a pele de agora, é também a porta de saída para sua libertação. Mito moderno, Orfeu de si mesmo, para não se perder outra vez, deverá olhar para trás e aprender com o passado. Se quiser avançar até a saída do inferno, precisará reconhecer seus próprios erros.
Norma (a filha) seguiu o caminho da mãe (Gal), o caminho que a personagem em questão cruzou para sofrer seu novo estado. A mãe já sucumbira diante da própria imagem, fruto de sua própria transgressão. Mas é também, ironicamente, o caminho de Norma que garante o fluxo de ida e volta no mundo, o caminho transgredido, de mão dupla, o caminho que deverá ser modificado pela personagem através de novas relações. Ela também sucumbirá?



Esse novo gênero traz, como sinal de seu nascimento, a mesma ambivalência que marca os demais gêneros. Daí talvez o tom soturno do filme, mostrado de forma emblemática ao seu final, quando o portador do novo gênero se apresenta com o nome de sua antiga identidade. Por isso, soa patético quando ele diz “Eu sou...”, e todos nós sabemos que ele já não é mais. A questão agora é se ele, nessa nova chance, será feliz em sua redescoberta. Com a nova educação, afinal erradicará de si o mal de que é sujeito e também vítima, que o atinge de dentro e de fora? Se a serpente que picou a Antiga Eurídice já estava no útero, ou se estava fora dele o tempo todo, nunca saberá, porque nunca saberá afinal como ela foi parar aí, quem ou o que a soltou em seu caminho. E frutificou. Os cristãos da Nova Espanha apenas desconfiam.
Mas, para não sufocar o espectador, Almodóvar, de maneira sutil, abre uma porta tão grande quanto a que fechou diante de nossos olhos. A personagem, com uma jaqueta vermelha brilhante (não mais o rosa de normas e regras adolescentes), deixa antever que a reeducação dependerá sobretudo dela mesma. Apoiada na sociedade sem rosto, deverá aprender a dura lição do auto-conhecimento e do conhecimento do outro. A nova vida começa quando o filme termina. Sem ilusões, será um árduo aprendizado. É triste e doloroso, mas sobretudo desafiador. Estamos tão impactados com o destino final da personagem, que não vemos aí um novo começo, e mais, demoramos a perceber que a nova condição deverá trazer também novas compensações. Se já não é o novo rosto da ilusão.
Quando as luzes se acendem, o filme continua em nossa mente. Ou melhor, temos a impressão de que estamos despertando numa sala de cirurgia do tamanho do mundo. “Eu sou...”
A resposta fica a cargo de cada um de nós. E de todos os outros.
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quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Nariz

   

     Foi no tempo do sonho.
     De férias em Capão da Canoa, fui para a beira da praia sacudir o tédio. Era final de tarde. Um grupo de adolescentes como eu disputava uma animada partida de futebol. Eu também queria bater aquela bolinha, fiquei atrás de um dos gols até que a peronha saísse para pedir uma vaga.

     Para garantir lugar nos jogos de beira de praia, era preciso encontrar o dublê, um para cada lado e o equilíbrio das equipes, ao menos numérico, estaria garantido. Éramos três os aspirantes. Procurei disfarçar a inquietação com o pensamento de que no instante da escolha, quando atuasse o famigerado olho clínico – tem melhor olho quem melhor joga – logo ressaltaria, na relação com os outros aspirantes, a minha pinta de jogador. Eu não era craque, mas batia um bolão, conhecia metade deles de outras partidas.
     Quando a bola cruzou a linha de fundo e interrompeu o jogo por alguns instantes, fizemos os três o que também era regra em tais ocasiões: procuramos, com olhar ávido, o mandarim do jogo. Mas era apenas quando o jogo cessava que os traços do mandarim se cristalizavam.  Não era difícil reconhecê-lo entre os demais, só exigia um pouco da atenção treinada, afinal ele também tinha a sua pinta: a de dono da bola.
     Mas era preciso ser rápido, do reconhecimento dependia o lugar no jogo.
     Quando a bola finalmente cruzou a linha de fundo, me antecipei aos demais e atrai a atenção do dono da bola. Assim que ele pôs o olhar em mim, fiz a senha com o polegar, também regra em tais momentos, que se traduzia por:
     "Tem uma boquinha, aí?”
     Sua reação no entanto foi espantosa. Com olhar ferino, ele disparou:
     "Tem, mas não pra você!”
     Resvalei na situação, olhei instintivamente para os lados. Queria um amparo, a sentença talvez não fosse pra mim. 

     Ele, com sarcasmo nos lábios, chegou perto de mim e desferiu:
     "Você não, você é judeu!"

     Eu disse que se tratava de um equívoco. Então a surpresa maior. Ele sorriu com desdém. Desconcertado, pensei em chamar sua atenção para os meus cabelos, minha cor de pele, a ausência de sardas e para o que me parecia o argumento irrefutável: eu não tinha o melzinho na pálpebra inferior bem próximo ao duto lacrimal. Mas a tempo percebi que qualquer esforço nesse sentido, além de inútil, seria um absurdo completo.
     Já decidido a abandonar esse jogo estúpido, ia saindo quando ele, com uma provisão a mais de sarcasmo, momentos antes de indicar a função dos novos jogadores, o indicador direito levantado à altura dos meu olhos, escarneceu:
     "O nariz! O nariz é de judeu!”
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quarta-feira, 17 de julho de 2013

O sonho da razão



Goya: "El sueño de la razon produce monstruos."


    A razão dos iluminados, sejam eles comunistas, capitalistas ou religiosos, (ou toda sorte de racionalistas já surgidos na face da terra), é uma lâmpada bastante curiosa e original: produz a luz divina na própria consciência, mas espalha sombras por tudo à sua volta.


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domingo, 14 de julho de 2013

Uma coisa em comum





     Quando pensamos em cultura hegemônica, sem levar em conta as relações de poder e o lugar que cada um ocupa dentro da sociedade dominada por ela, aceitamos facilmente a ideia de sub-culturas e toda carga de diferenças que as fazem parecer manifestações exóticas. Nesse quadro, quando buscamos a solução para antagonismos de hábitos e costumes, de classe, cor e sexo, de partido, religião ou estético, etc., logo resvalamos para conceitos gerais e abstratos como bem comum, interesse da maioria, conciliar os opostos... Pois as soluções, via de regra nesses casos, partem sempre desse cimento universal chamado de cultura hegemônica, em especial quando as respostas vêm das instituições e dos governos, públicos ou privados. É no seu âmago onde encontramos os remédios de aplicação maciça (que pioram ainda mais a saúde do paciente). 
      Assim nos ensinaram.


*

       Isso lembra a briga entre o Bêbado e o Equilibrista. Quando este último finalmente cravou seu punhal no coração do outro, o fez com um comentário verdadeiro, sim!, e bastante perspicaz:
      - Era isso! Você é que não queria entender: que temos coisas bem em comum... Agora temos algo profundamente em comum.
      De fato, enquanto o Equilibrista segurava com firmeza e ainda com alguma pressão o punho da arma, e a ponta permanecia cravada no coração do seu inimigo, o Bêbado não tinha argumento forte o suficiente para contradizer essa verdade. 
      O ferro os unia, tinham mesmo uma coisa bem em comum, quente e afiada... 
      A única diferença, concluía o Bêbado no âmago de sua impotência, era o lado em que cada um estava. Mas ele não tinha mais meios para resolver esse último antagonismo.





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