Num mundo em que a evolução técnica já é capaz de trocar até o rosto das pessoas, sem no entanto lhes dar uma nova identidade, como fica o (auto) reconhecimento do sujeito?
Essa inquietante questão também está colocada no mais recente Almodóvar, “A pele que habito”. Não tem a mesma vibração de cores nem as tiradas espirituosas de filmes anteriores do autor. Ao contrário, dessa vez o cineasta espanhol nos mostra interiores e roupas de cores sóbrias, e, quando a luz reluz, tem a frieza asséptica de uma sala de cirurgia.
Tudo a ver com o assunto: cirurgião plástico, Robert pesquisa em busca de nova pele para a mulher, que sobreviveu a acidente de automóvel quando fugia dele... Entre a vida e a morte, o corpo transfigurado pelo fogo, ela fica aos cuidados do médico-marido. Mas um incidente terrível, provocado de modo involuntário pela filha do casal, elimina qualquer possibilidade de êxito para a busca do marido. Essa face do trágico tem origem na candura. Quem se ergue e vai atrás dela, não suporta sua auto-imagem refletida. Diante do grotesco, a queda. Anos mais tarde, a menina será vítima de um novo golpe brutal, dando ao médico a inesperada oportunidade de resgatar a mulher perdida.
Entre avanços e recuos no tempo, o filme apresenta uma galeria de personagens transgressoras. Insatisfeitos com a própria vida, cada qual transgride à sua maneira. Robert trabalha para uma gangue que fatura com a troca de rosto de criminosos, mas o seu lance mais ousado, e motivo condutor do filme, foi praticar com as próprias mãos um ato de vingança, ao sequestrar o causador de grande mal à filha. No caminho da vendeta, em algum momento, ele vislumbra a possibilidade de retomar sua procura original.
À semelhança de Montresor em “O Barril de Amontillado”, de Poe, o médico manterá sua vítima a ferros em caverna particular, enquanto destila o insano plano de busca. Aqui talvez há referência “invertida” ao mito de Orfeu, que foi ao mundo dos mortos resgatar sua fiel Eurídice (esta também se acidentou, com a picada da cobra, mas quando fugia ao seu perseguidor Aristeu). Em sua busca por uma pele nova e “resistente” para a mulher, Robert não hesita em violar o código que proibia a transgenia aplicada a seres humanos. É advertido por um membro da comunidade científica, mas vai adiante.

E por aqui entra um assunto caro a Almodóvar: a figura masculina. A trinca é filha de pais ausentes, que não participaram de sua educação afetiva. Como em outros de seus filmes, aflora a imagem do macho autoritário e fornicador, o animal procriador que não cria, não cuida, não educa. E que no extremo de seu lado monstro, será capaz de barbaridades invasivas contra o outro, em atos repulsivos como o estupro. No egoísmo do mundo para mim, Robert e os outros não reconhecem a vontade de quem está diante deles, a não ser como espelho de suas próprias vontades. Parecem dizer que o outro não tem rosto, que a pele que habitam é e será apenas a fornecida pelo eu mesmo. Eles mesmos retratos de uma sociedade sem rosto.
Almodóvar evita a simplicidade dos opostos, suas figuras femininas importantes também não recebem olhares condescendentes. A certa altura, Marília (Maria?) afirma que a loucura dos filhos foi gerada no seu próprio útero. Talvez aí, em se tratando de transgenia, mudança de corpo, de pele e de sexo, há um traço de determinismo no filme, ao eliminar as forças do ambiente como também causadora de nossos males. A responsabilização do indivíduo, no caso aqui a figura feminina, eximiria a vida social de responsabilidade por nossos graves desvios. Porém, o mesmo poderia ser dito por uma personagem masculina, afinal a loucura instalada no útero de Marília teve participação do pai. Se pensarmos numa Espanha católica fervorosa, a interpretação pediria muito mais espaço.
Mas tal hipótese entra em conflito dentro do próprio filme. Pois há nele outra vítima, considerando todos os transgressores como também vítimas de suas origens e meios. Essa vítima é a filha do casal. Nossa visão até aqui parece confirmada no nome dado a essa personagem. Além do trauma pela perda violenta da mãe, que a colocará sob acompanhamento médico o restante da vida, ela sofrerá a violência que desencadeará a vingança e a busca do pai por sua Nova Eurídice.
O tecido frágil da menina, sua condição emocional pós-trauma, simbolicamente a pele que habita, é rompido por um ato unilateral de vontade. Diante dessa violência, logo associada à figura do pai, ela perde a confiança numa vida estável e justa, acelerando o seu desligamento do mundo. Momentos antes de ser mais uma vez vitimada, joga longe os sapatos de tacos altos (renúncia ao seu caminho) e logo o casaco rosa (a pele social), dando vivos sinais de que ela mesma não suportava mais a prisão da própria vida, sustentada de maneira artificial por químicas anestésicas.
O seu nome é Norma.
Nesse Frankenstein de Almodóvar, em que o criador sucumbe à sua própria criatura, em que aquele que traz a cura (o médico) habita o mesmo corpo daquele que transgride a norma (o monstro), parece não haver salvação para ninguém. É quem sabe o filme mais niilista do diretor, até aqui. Robert, ao se apaixonar por sua vítima, inverte a síndrome de Estocolmo (nome originado do assalto com sequestro próximo à praça Norrmalmstorg, no centro daquela cidade), mas nem isso o salva.
A Bela, para fugir de seu cativeiro, não renuncia ao cometimento de novos crimes. O contato com a arte, a ioga, a leitura de Alice Munro, nada elimina o germe da maldade em seu tempo de prisioneira. Felicidade demais, no caso da agora bela vítima, é aguardar pelo tempo da vingança, tempo em que ela mesma será a Fera. Para isso, basta um erro de seu algoz.
A Bela, para fugir de seu cativeiro, não renuncia ao cometimento de novos crimes. O contato com a arte, a ioga, a leitura de Alice Munro, nada elimina o germe da maldade em seu tempo de prisioneira. Felicidade demais, no caso da agora bela vítima, é aguardar pelo tempo da vingança, tempo em que ela mesma será a Fera. Para isso, basta um erro de seu algoz.
O erro de Robert, como dos demais (como o de nós outros quando incorremos na mesma cegueira) foi não reconhecer nem a si nem ao outro. Não faz investigações para saber os motivos da traição da mulher, não supõe que ele mesmo é parte da resposta, talvez a maior, a porção mais significativa da causa de sua própria desgraça. Desconhece a si mesmo, pois não sabe que não é filho dos Legrand (os Grandes?), e vítima de sua própria cegueira, Robert-Édipo busca estabelecer unilateralmente a identidade do outro, sem perceber que sua própria identidade, seu conhecimento de si, depende sobretudo do outro, e qualquer imagem que resulte disso só pode ser tecida na e com a relação dos sujeitos, nunca no eu sozinho, na loucura precária de fazer do outro minha imagem e semelhança.

Aí está o grande desafio lançado por Almodóvar. Em princípio, em a pele que habito, não muda o sujeito, apenas o seu lugar. Parente do/a Diadorim de Guimarães Rosa e de o/a Orlando, de Virgínia Woolf, a personagem em questão, depois da mudança radical de estado, ainda permanece ligada ao seu conteúdo anímico, ao seu todo espiritual e afetivo. A sua memória, até essa nova condição, é de determinado gênero, ligada a determinado sexo. Porém, a nova condição (o novo corpo, a pele nova) pede uma nova mente.
Fruto do que Ortega y Gasset, filósofo conterrâneo de Almodóvar, chamaria de “ele e a sua circunstância”, esse homem, num único golpe, teve mudados os dois termos da expressão. Nem homem nem mulher, nem macho nem fêmea, o novo fruto, ou a Eurídice invertida, é um híbrido infértil. Violentado, jogado num caminho e numa pele não escolhida por ele, mas determinada por outro (de fora, já dissemos) com a sua participação (afinal seu estado atual é também motivado por suas escolhas passadas), ele agora é de outro gênero. Misto homem-mulher, gênero estéril, é incapaz de descendência. Nesses termos, como fazer para se reconhecer e ser reconhecido? Como alcançar a fecundidade?
A personagem, com a mudança de sua condição, deverá criar novas relações com o mundo para se desenvolver. Isso é tão inevitável, como dependerá do sucesso dessa busca sua sobrevivência, para que não entre em colapso como a antiga norma. Por escolha de outro, não será mulher completa nem homem completo, de acordo com os padrões anteriores ao seu estado atual, mas que ainda presidem o seu novo nascimento. O desejo de plenitude permanece vivo.
Mas o seu problema tem o tamanho do mundo, afinal este não mudou. A sua reeducação deverá se dar no mesmo ambiente, lato sensu, em que cometia e ainda comete suas transgressões. Portanto, sem ilusão. Já que não pode mudar o mundo, e sua condição foi alterada sem opção sua, deverá buscar nos outros (e em possíveis semelhantes) o seu novo modo de ser, para que a nova pele que habita, no corpo estranhado, não seja novo cativeiro. O seu castigo, que é ter de viver sob a pele de agora, é também a porta de saída para sua libertação. Mito moderno, Orfeu de si mesmo, para não se perder outra vez, deverá olhar para trás e aprender com o passado. Se quiser avançar até a saída do inferno, precisará reconhecer seus próprios erros.
Mas o seu problema tem o tamanho do mundo, afinal este não mudou. A sua reeducação deverá se dar no mesmo ambiente, lato sensu, em que cometia e ainda comete suas transgressões. Portanto, sem ilusão. Já que não pode mudar o mundo, e sua condição foi alterada sem opção sua, deverá buscar nos outros (e em possíveis semelhantes) o seu novo modo de ser, para que a nova pele que habita, no corpo estranhado, não seja novo cativeiro. O seu castigo, que é ter de viver sob a pele de agora, é também a porta de saída para sua libertação. Mito moderno, Orfeu de si mesmo, para não se perder outra vez, deverá olhar para trás e aprender com o passado. Se quiser avançar até a saída do inferno, precisará reconhecer seus próprios erros.
Norma (a filha) seguiu o caminho da mãe (Gal), o caminho que a personagem em questão cruzou para sofrer seu novo estado. A mãe já sucumbira diante da própria imagem, fruto de sua própria transgressão. Mas é também, ironicamente, o caminho de Norma que garante o fluxo de ida e volta no mundo, o caminho transgredido, de mão dupla, o caminho que deverá ser modificado pela personagem através de novas relações. Ela também sucumbirá?
Esse novo gênero traz, como sinal de seu nascimento, a mesma ambivalência que marca os demais gêneros. Daí talvez o tom soturno do filme, mostrado de forma emblemática ao seu final, quando o portador do novo gênero se apresenta com o nome de sua antiga identidade. Por isso, soa patético quando ele diz “Eu sou...”, e todos nós sabemos que ele já não é mais. A questão agora é se ele, nessa nova chance, será feliz em sua redescoberta. Com a nova educação, afinal erradicará de si o mal de que é sujeito e também vítima, que o atinge de dentro e de fora? Se a serpente que picou a Antiga Eurídice já estava no útero, ou se estava fora dele o tempo todo, nunca saberá, porque nunca saberá afinal como ela foi parar aí, quem ou o que a soltou em seu caminho. E frutificou. Os cristãos da Nova Espanha apenas desconfiam.

Quando as luzes se acendem, o filme continua em nossa mente. Ou melhor, temos a impressão de que estamos despertando numa sala de cirurgia do tamanho do mundo. “Eu sou...”
A resposta fica a cargo de cada um de nós. E de todos os outros.