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Morning Sun, 1952, Edward Hopper |
Sentada na cama, pensa. Não faz mais que isso. Não há mais nada a fazer, o mundo está vazio e ela sabe disso. Não adianta gritar ou correr; nem partir os cristais. Ninguém virá. Os cristais estão em sua garganta. Sozinha, o tempo não existe, sua vida não existe. Passado, memória, cárcere. Avança, recua, voltas e voltas dentro dele. Mas não procura a saída, sabe que não há portas, apenas o muro. O inferno é ela mesma, o inútil batimento de seu coração. Já chorou tudo que tinha, já pediu o impossível, já gemeu baixinho. Já perdeu toda a esperança.
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Excursão na Filosofia, 1959, Edward Hopper |
Da inutilidade de minha existência, do vazio ao redor, do nada além de mim tirei o que pude. Dei forma a tudo, criei espaços e tempos - criei vida. Mas não sei o que me criou, não sei meu fim nem o que sou. Sempre amei, mas não descobri a forma de me mostrar. Eu não tenho forma. Sempre encoberto. Criei todas para me encontrar e acabei perdido. Ninguém viu minha face real, me atribuem máscaras. Ergueram ídolos e totens; derrubaram ídolos e totens, mas nunca chegaram a mim. Tudo que criei sou eu mesmo; nem assim me reconhecem. Nem eu me reconheço. Talvez eu não tenha uma face real.
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Verão Interior, 1909, Edward Hopper |
Eu não tinha mais nada a fazer senão destruir o mundo. O problema é que destruí a mim também. Sou o mundo dela, mas ela não sabe. Dorme, pensando. Achou que amava, e que por isso não precisava de mim. Me esqueceria. Então, eliminei o primeiro a quem se entregou. Mas ela foi até outro e renovou seu amor. Destruí-o. E destruí também o terceiro, o quarto... - todos a quem ela se entregava. Mas como o seu destino era amar, a cada um eliminado, encontraria outro.
Então eliminei todos à volta dela para que cumprisse a sua sorte no único sobrevivente. Aquele que ainda a envolve, aquele sobre quem ela mantém os pés, aquele que ela bebe, come, respira - cospe.
Não adiantou. Ela não me ama, e como não pode cumprir o seu destino, sofre.
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Quarto em Nova York, 1932, Edward Hopper |
Eu sofro. Sofro a falta desse amor que me daria vida, a forma exata, o meu destino - talvez um fim. Usei todas as coisas para convencê-la do meu sentimento. Me desfiz. Quero ajudá-la, mas não tenho braços nem pernas, não tenho voz com que chamar por ela, não tenho boca para beijar sua chaga.
Fiz tudo que podia.
Fui, sou o mundo todo só para ela. É pouco. Não tenho a maldita forma humana que ela busca para se consolar. Se eu (que eliminei todos à sua volta) aparecesse sob tal disfarce, ainda assim não me reconheceria. E quando por fim eu soprasse meu nome ao seu ouvido, sorriria - incrédula! Se sou, se faço tudo, me despreza. Se sou humano, não acredita.
Hoje pela manhã bati à sua porta. Abriu, mas não viu nada além do vazio. Pensou que fosse ilusão e voltou-se para dentro.
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Quarto de Hotel, 1931, Edward Hopper |
Mas não perdi a esperança, e quando ela preparar seu alimento, serei o amido. Quem sabe se assim, ao me esmagar entre os dentes, sua língua reconheça o meu sabor em sua boca, e ela afinal descubra que eu existo e vivo só para ela, para alimentar sua paixão, para curá-la de toda essa solidão.