quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Um romance por dentro


Em Os Hungareses, romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2012, Suzana Montoro, através do registro de um movimento migratório provocado por uma ruptura social violenta, aborda a memória como a arte de pertencer (a um lugar) além do trauma.

“Acho que sou feita de memória
e o passado é o meu presente.”

Capa do livro. Editora: Ofício das palavras.
“No primeiro dia iugoslavo da aldeia, ao chegar à escola levei um tapa na mão quando disse o costumeiro bom-dia, já napot. Em húngaro não, ago-ra temos que falar em servo-croata, a professora sussur-rou em meu ouvido. Olhei atônita, o que eu podia dizer se não sabia falar coisa alguma na língua sérvia? Ao mudar-se de país, muda-se de idioma, ela ficou repetindo diante de nós, uma classe petrificada e muda. Era o mesmo que voltar para trás e começar tudo de novo, seja criança seja velho, todos iguais nos primórdios do novo idioma. Tínhamos de aprender a nos expressar na nova linguagem.” (pág. 20-21)
   



     “Os Hungareses”, como toda boa literatura deve fazer, desperta nossa sensibilidade para uma condição humana tocante. E não apenas pelo exótico, tão presente no romance de Suzana Montoro, mas também pelo tanto de humanidade assombrosa das situações mostradas. Lembram o que Pablo Neruda, ao se referir à realidade latino-americana, certa vez chamou de surrealismo concreto. O poeta chileno respondia à indagação sobre o motivo de os escritores do nosso continente não terem demonstrado grande interesse por aquele movimento. Segundo Neruda, por vivermos realidades absurdas, que sob muitos aspectos desafiam e até mesmo negam a própria lógica, esse estado de coisas por si só seria o suficiente para provocar a imaginação. Os defensores do realismo mágico acrescentariam, mais tarde, que antes de atender ao racionalismo ocidental, sua literatura refletia o modo maravilhoso como grandes parcelas das populações latino-americanas percebem o mundo.
    Pois esse mesmo espanto, ao registrar a dolorosa mudança da na-cionalidade húngara de “um vilarejo incrustado nos Bálcãs, na bacia do Danúbio”, também está aqui presente. Como diz a autora na nota final do livro, as histórias são “absolutamente originais e quase inverossímeis. Mais pareciam literatura do que a vida vivida.”  Não se trata de filiar o livro a esta ou àquela corrente, mas de identificar alguns dos princípios que informam e orientam boa parte do material a ser abordado de maneira literária. Antes de ser modo ou moda literária, o que não é o caso aqui, trata-se de uma visão de mundo. 
     Com o apoio do Programa de Ação Cultural, da SEC do Estado de São Paulo, o romance é fruto de entrevistas com moradores e descendentes de húngaros, no interior desse Estado, e de viagem da autora até a Hungria para viver melhor o que contava. A ambientação de grande parte do livro no Exterior é uma característica presente na atual literatura feita no Brasil, sobretudo nos novos autores, que sinaliza a abertura dos ficcionistas brasileiros para o que ocorre fora de nossas fronteiras. A diferença marcante, que no caso de "Os Hungareses" se constitui em mérito, é que, ao contrário de grande parte de seus congêneres, sua realização correu por iniciativa e conta da autora; não foi encomenda de editor nem recebeu patrocínio para render um filme, por exemplo.
      O livro ratifica as qualidades da autora reveladas em seus títulos para crianças e jovens. Um deles, “O Menino das Chuvas”, recebeu o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil, com qualidades agora mais maduras e desenvolvidas. O controle dos períodos, a extensão adequada das frases e a uniformidade do conjunto asseguram bom ritmo para uma leitura segura e agradável. O leitor entra num túnel de voz e vive uma experiência única, e por que não dizer: mágica e sedutora. 
       A magia do próprio material está bem representada no tratamento, na sensação de que a autora encontrou o tom certo, nada é forçado, e isso também colabora para a leitura fruir com naturalidade. É a expansão de um talento despontado em seu livro de contos, “Exilados”, já insidiosos, econômicos, certeiros. O vocabulário, com todas as notas exóticas que pede a história, não sobrecarrega o leitor com informações desnecessárias. E que nomes! São tão reais e convincentes, tão bem ajustados ao conjunto, que dão mesmo a impressão de se tratar de uma história ocorrida em outro país, e noutra língua.
Suzana Montoro (jornal Rascunho)
     Suzana Montoro realizou a difícil tarefa de erguer, com notas “estrangeiras”, um mundo inteiramente novo para o leitor brasileiro, mas sem o choque experimentado pela mãe de uma das narradoras do livro, que, nascida húngara, de um dia para outro, “com a mesma naturalidade com que se acorda todas as manhãs, virou iugoslava”. Pois até quando a história se passa no interior de São Paulo, ficamos com a impressão de que continuamos respirando em terra estra-nha, e essa parece uma das grandes qualidades do livro, pois abre questões bastante instigantes para quem reflete sobre a literatura a partir de sua fonte e de seu alcance. 
      O estranhamento, a permanência dele embora a mudança do local, nos dá a ideia de que uma das personagens principais, se não a principal, é a linguagem. Mas sem as rupturas superlativas do experimentalismo de vanguarda. Ela, essa linguagem peculiar, a todo instante nos lembra que estamos diante do outro. Se por um lado dificulta a empatia com as demais personagens – por seu modo de ser estranho ao nosso -, por outro nos convida a observar e logo a nos entregarmos a esse novo conhecimento.

     “Éramos todos estrangeiros na própria terra, órfãos da língua materna. Não podíamos falar o que não sabíamos e não sabíamos falar o que podíamos.” 

       A fluidez da narrativa é também alcançada pelos diálogos intercalados à voz do narrador, sem marcação, mesmo procedimento adotado em sua novela juvenil “Nem eu nem outro”, num bom aproveitamento do coloquialismo. A cada vez que abrimos fortuitamente o livro, nos deparamos com uma frase rica de detalhes, uma narração enxuta, imagens e pensamentos de muita força. A autora, deixando de fora cenas e pontuações triviais, que apenas atravancariam a leitura, selecionou o que importa. Daí vem a força e o interesse crescente, a coisa anda, e nos deixamos levar por ela. 
       A abertura dos parágrafos, com novas ações ou mudanças de local, é mais um ponto alto no domínio da técnica narrativa demonstrado pela autora em seu primeiro romance. As passagens são tão bem feitas que nem sentimos o peso da viagem; ao contrário, somos instigados de trecho em trecho a saber o que acontecerá mais adiante, sem apelo a truques nem ao uso naturalista da trama. São qualidades de boa romancista, cujos exemplo maior é a expectativa criada no leitor em relação ao reaparecimento da Tia Rózsa. O desdobramento posterior da história no Brasil seria outro bom exemplo. Acompanhamos com interesse e curiosidade para ver como as coisas ocorrerão na nossa terra.
       A abertura da história também confere aspecto memorialista ao romance, ao assumir caráter rememorativo; a experiência se completa e se confirma no final. Grosso modo, dá para dizer que as duas pontas estão fincadas no Brasil, terra da narradora principal do livro, com grande parte do entrecho nos Bálcãs, terra de origem do ethos hungarês. Isso confere ao romance uma estrutura circular, mas com desaguadouro final num mundo novo, cuja figura emblemática é a da Tia Rózsa e seu ressurgimento, a sugerir uma nova volta do parafuso. 
      Rozália, a de “suave voz de passarinho”, é a personagem condutora de grande parte da história. Através dela o material “estrangeiro” vai sendo trazido para o tratamento dado pela narradora principal, que por sua vez aporta com as experiências do sítio brasileiro. Em torno dessas duas vozes, as demais personagens vão ganhando espaço, corpo e voz. A exemplo da linguagem, temos aí também outra personagem coletiva, como se “os hungareses” fossem na verdade uma única personagem. A princípio isso pode sugerir um reducionismo abstratizante, afinal as demais personagens estão bem caracterizadas, com suficientes atributos para a caracterização de vidas particulares.
    Apoiamos essa impressão, que não diminui, ao contrário amplia a compreensão do romance, num aspecto saliente em todo ele. A exemplo de algumas narrativas de Tchékhov e sobretudo de Katherine Mansfield, a atmosfera, no caso aqui o “modo de ser húngaro”, é algo bastante presente ao longo da história – como já o fora em seus contos a predileção pela ambiência –, a ponto de podermos afirmar que os caracteres individuais, manifestados nas mais variadas peripécias e experiências pessoais, são os motivos condutores da história, mas não isoladamente. Como se o romance fosse um conjunto sinfônico (o que na verdade é), as diferentes vozes contribuem, cada qual com seu timbre, para a composição total, e assim expressam o caráter maior. 
       O todo aqui são os hungareses e suas idiossincrasias, de tal modo expostos e explorados que diríamos que, além de investigar em torno de caracteres individuais, a autora foi através desses para estudar e compreender o modo de ser de uma comunidade. Podemos dizer que o objetivo final era mesmo nos mostrar a alma coletiva de um “povo” originado nos Bálcãs, o que aliás já está dado no título. 


Mapa da Hungria, com seu nome original, de grande repercussão no romance.


      A personagem que melhor simboliza tudo isso é a da Tia Rózsa. Como convém ao tratamento de um ethos coletivo, ela tem as características de uma personagem mítica. Solta na trama, pode aparecer em qualquer lugar e a qualquer momento. Está sempre chegando e partindo, ou seja, não tem o lugar fixo próprio de individualidades enraizadas, como os demais. Em relação a estes, ela está fora do tempo, é como se Tia Rózsa fosse o tempo que escoa imperceptivelmente, com a diferença de que ela permanece como portadora das características e destinos de todos. A confirmação disso é o fato de seu nome, como podemos ver no mapa acima, estar contido no nome do país em húngaro, na forma de anagrama. Fora da história, está sobretudo no início e no fim do romance feito marco, e o seu constante partir e chegar dá bem a ideia de ciclos de vida, num eterno recomeço. É o seu caráter mágico, também presente, numa sutil e feliz coincidência com o português, no início do nome pátrio. 
"Um Passaporte Húngaro" (2002), de Sandra Kogut
(Material de divulgação do filme)
    Por outro lado, ela também simboliza o desenraizamento pró-prio de quem perdeu a nacionali-dade e mergulhou no silêncio – assunto subjacente do romance –, portadora de uma agonia impossível de compartilhar com quem não seja seu igual. Lembra a Santa Louca da infância, que alguns leitores talvez compartilhem, em especial os que viveram no interior do país, mulher sem origem e sem paradeiro, que assim como aparecia na porta de casa com uma lata de leite Ninho para pedir comida, sumia sem que soubéssemos para onde nem quando retornaria. 
    Emblemática, Tia Rózsa é a condutora desse ethos desterritorializado, sujeito sem local próprio para fixar sua raiz. Transeunte da memória, procura no mundo o estuário onde desaguar, ente universal e semelhante a todos os seres humanos. O seu modo de ser húngaro, a realização particular da potencialidade humana, só pode desaguar na única dimensão capaz de recolher e fixar sua humanidade: a linguagem. É o trabalho da caçula narradora, a fiadora da costura que, para além do tempo e do espaço social e histórico, registra a voz dos que não têm voz, sobretudo dos que perderam a voz em meio ao trânsito. Assim, elas se complementam, verso e reverso da mesma moeda, portadoras da memória da aldeia, no caso dos hungareses de lá, e do sítio, no caso dos hungareses de cá.
     Quanto às vozes narrativas, mãe e filha desempenham o papel de facilitadoras para a trans-missão da experiência, marcando aí mais um espelhamento, uma complementando a outra. A voz da mãe, em muitos trechos, lembra os narradores das novelas infantis da autora, em especial “Em Busca da Sombra”. Aliás, aqui também surge a questão da identidade relacionada à posição do outro. É possível traçar um paralelo com “A pele que habito”, de Almodóvar (que abordou essa questão expandindo-a para o gênero e a sexualidade).
      A condição angustiante dos hungareses talvez resida no seu isolamento, tanto na aldeia como no sítio, a falta do outro em quem se espelhar e se reconhecer, sobretudo na afirmação das diferenças, sem que esse outro seja a negação da própria cultura. É o conflito angustiante dos exilados, pois correm o risco de, mais dia menos dia, naufragar na assimilação, enquanto lutam para afirmar, no outro, a marca de sua diferença. Resta, como numa frase do personagem de Almodóvar no cárcere, agarrar-se à auto-expressão, pois “la arte es garantia de salud”. 
      Voltando ao romance, às vezes fica-se com a ligeira impressão de que, em certos momentos, as vozes soam indiferenciadas, como se traíssem um mesmo sujeito de enunciação. Esse desafio, fazer as vozes falarem com dicção própria, marcadamente diferentes uma da outra, é a maior dificuldade quando o autor trabalha com mais de um narrador. Talvez essa impressão se deva por elas, as vozes, estarem muito próximas, por ocuparem o mesmo espaço/tempo narrativo, ou melhor, olharem o material de um mesmo ponto de vista. Talvez se as vozes conflitassem ao abordarem um mesmo assunto, ou se se referissem a assuntos bem distintos, com colorido próprio, talvez ficasse mais clara sua alteridade. 
      Mas apesar disso, e de alguns cochilos da revisão, “Os Hungareses” é expressão pura de inteligência intuitiva, desde as primeiras linhas nos sentimos em companhia de boas mãos. Nos entregamos já na largada, sem travar nem temer passo em falso durante a leitura, o que atesta a firmeza da abordagem dos assuntos pela autora. Aliás, transbordam sabedoria e clareza existencial em toda a narrativa. Somos brindados a cada página com belas frases, como a que vai de epígrafe neste texto. Vale a pena ampliar a citação:

      “Até hoje, quando busco pelas lembranças da minha aldeia, é a paisagem desses dias que me chega num silêncio fresco de quem acabou de acordar. E me vejo em meio a essa paisagem como se nunca tivesse saído de lá. Acho que sou feita de memória e o passado é o meu presente.”

      Há em todo o romance a solidão de um mundo sem Deus, criaturas abandonadas muitas vezes a um destino cruel, sem misericórdia. A maldade fria da avó torta é também emblemática, soa como um rito de passagem para um mundo adulto sem esperança. Nesse sentido, o livro chega a ser desolador, a pungente condição das personagens em certos trechos nos enche de tristeza, como se soubéssemos a todo instante que o destino final seria o mergulho no fundo da piscina. Mas aí entra Tia Rózsa que, a exemplo da mãe, dá alguma estabilidade à sobrinha neta, ao menos a clarividência de antecipar algumas consequências dos atos, o que já é um grande passo para a maturidade e a superação do trauma. 

Foto de Madalena Schwartz (1921-1993), fotógrafa húngara,
que curtia o teatro underground de São Paulo 

      O destino no teatro será a resposta individual da narradora a essa alma torturada e livre de todos nós, hungareses. Embora saibamos que, no conjunto, a alma estrangeira será em parte assimilada no silêncio da agonia, ficamos gratos e até um pouco felizes ao perceber que, como diria Drummond, de tudo afinal fica um pouco. No caso aqui, não foi pouco, foi uma ponte destinada a ligar os dois pontos da linha cortada pelo Atlântico. Nesse sentido, a viagem da narradora à terra de seus ancestrais é a garantia da saúde, o religamento, a re-união de uma comunidade seccionada por um mundo/mito sem Deus. Tomara chegue esse dia, quando os irmãos de lá reconhecerão os irmãos do lado de cá, trabalho possível também e sobretudo por uma boa tradução.
      Embora a pungência desses destinos, não há como não ficar impactado com situações muitas vezes hilárias, bizarras, totalmente fora da casinha. Que gente, que situações, e que humanidade! E que lance o de Suzana Montoro ao recriar todo esse universo, ao dar, a uma existência que esse tempo velhaco imaginava engolir sem deixar traços, uma expressividade vivaz, cheia de talento, técnica e sabedoria. 
      É a vitória da memória sobre o tempo. 
      E isso tudo num primeiro romance. 
    Para arrematar, cito as palavras finais da nota da autora, referida logo no início da resenha: 

      “Os nomes estão trocados, as histórias são inventadas, mas quem viveu no sítio ou conviveu com elas sabe que é tudo verdade.”